sábado, 22 de fevereiro de 2020

Não temos escapatória


Diário do Velhote do Penedo (10)

Não há mais esquerda ou direita em política. Os que se dizem de esquerda no Brasil ou são desinformados ou são nostálgicos de uma ideologia que virou fumaça com a derrocada da antiga União Soviética. No Brasil de hoje, são de direita todos que não se dizem de esquerda. Pelo menos, é o que esses últimos pensam.
A soma de desinformados e nostálgicos produziu no Brasil partidos como PT, PSTU, PCdoB, Psol e outras bobagens que não conseguem sequer apresentar um projeto nacional ou um plano de recuperação econômico. Ficam, então, a repetir o velho discurso dos anos 1950, 1960, como se ele explicasse e desse conta do mundo de hoje. É incrível, mas alguns dos desinformados e nostálgicos se dizem stalinistas, trotsquistas ou coisa que o valha, sem perceber o alcance e o significado do que dizem.
No mundo acadêmico, mormente nas áreas sociais e humanas, esse cenário chega ao absurdo. Sem condições de criar uma interpretação consistente das questões de hoje, inclusive por falta de autores novos franceses em quem se espelhar, grande parte dos professores das áreas sociais e humanas submergem na repetição das falas de Marx (que pouquíssimos leram), Foucault, Derrida e Habermas, dos quais leram apenas apostilas.
Os estudantes (de esquerda), em sua maioria, supõem ser possível resolver todos os problemas na base do grito – e, como não têm o hábito da leitura, apenas repetem, sem qualquer juízo crítico, o entulho atochado nos seus ouvidos por seus professores. E como tudo – ou quase tudo - que recebem dos mestres está superado, vencido pelas reviravoltas de um mundo que se transforma em ritmo alucinante, os estudantes pensam mal, falam mal, escrevem mal. Estão fora do mundo civilizado, cujo fundamento está na escrita e na leitura.
Como são desinformadas e nostálgicas (às vezes são as duas coisas, em dosagens variadas), as esquerdas brasileiras tentam compensar suas deficiências (que eles não percebem que têm) ao apostrofar que os outros, os que não estão com eles, ou sejam, aqueles que eles denominam de direita, são incultos, burros e safados. Trata-se, sem dúvida, de uma compensação. Na verdade, os desinformados e nostálgicos sofrem pelo que são, pois, no fundo, não vêm perspectivas para si e para o mundo ideal, a maquete socialista, que assombra suas mentes, como um espectro. A derrocada do ideal socialista criou-lhes enorme sensação de vazio existencial, daí a fúria com que atacam aqueles que não pensam como eles e não lhes dão apoio. Para essa gente, a vida é um inferno.
O certo é que o esquerdismo dos desinformados e nostálgicos (daqueles que se declaram hoje de esquerda no Brasil) não é marxista – e, sim, uma espécie de fé, de crença mística.
Em recente artigo, Luiz Carlos Azedo discute as críticas de Tony Judt (em “Pensando o século XX”) ao historiador Eric Hobsbawn, que se mostrou relutante em reconhecer os equívocos e erros da antiga União Soviética. “Judt também critica Hobsbawn”, nota Azedo, “por justificar o terror stalinista e as coletivizações forçadas com o esforço de guerra”. A esquerda brasileira tem a mesma postura, ou seja, as mesmas dificuldades de Hobsbawn para fazer autocrítica. E, por isso, comete e persiste nos mesmos erros.
Em “A poeira da glória”, Martim Vasques da Cunha fez uma análise criteriosa da obra de Antônio Cândido – e demonstrou que o autor de “Os parceiros do Rio Bonito” vendeu aos seus leitores a ideia de “reformador social”, ou seja, um sujeito de esquerda. Sua intenção era a de manter a ideia que seus leitores têm dele. Este é outro traço do comportamento da esquerda brasileira. Supor que como sujeito de esquerda, seus comentário possuem valor “per se”. Tanto os desinformados como os nostálgicos supõem possuir inteligência que os distinguem dos sujeitos ditos de direita.
Vou fazer agora um comentário pessoal. Durante décadas, acreditei no ideal socialista – e reconheço que fechei os olhos para os muitos erros e crimes cometidos em nome do socialismo real, como a miserabilidade dos crentes, a formação de uma burocracia dominante e corrupta - e da violência institucional comandada por Lênin e Stalin. Hoje, tenho consciência de que o socialismo real acabou. Acredito também que o capitalismo é o regime, por excelência, da exploração e da concentração, que não reúne nenhuma complacência para com o povão. Não acredito que o capitalismo tenha condições de atender os bilhões de miseráveis que habitam o planeta.
Em síntese: o socialismo acabou e o capitalismo não dá conta de alimentar mais de seis bilhões de viventes. A saudosa maloca, os sonhos de todos nós, afundou – e só nos resta cantar: “saudosa maloca, maloca querida, did-di-donde, nós passemos os dias feliz de nossa vida”.
Este, enfim, foi o mundo que todos nós, de uma maneira ou de outra, em maior ou menor proporção, criamos. Vivemos num mundo sem saída. Não temos escapatória.  

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Diário do Velhote do Penedo (7)


“Essa gente” – livro confuso e medíocre

O pouco que li a respeito do último livro do Chico Buarque, “Essa gente”, não foram, por assim dizer, críticas simpáticas. “Essa gente” narra a história de Manuel Duarte, um escritor decadente (autocrítica?), autor de um romance histórico de sucesso no passado, “O eunuco do Paço Real”. A decadência de Duarte manifesta-se nos planos financeiro, intelectual e afetivo, mas o que “Essa gente” denota é que, como romancista, Chico Buarque é medíocre. Romance escrito às pressas, “Essa gente” nada mais fez que acentuar a imperícia do autor, já evidente em livros anteriores.
Antes de ser linchado, digo, com sinceridade, que considero Chico Buarque um dos três maiores letristas da música popular (os outros são Noel Rosa e Aldir Blanco), autor de verdadeiras obras-primas como “Com açúcar e com afeto”, “Construção”, ”Valsinha”, “A banda” e “Apesar de você”. Esse é o seu campo. É onde ele se realiza como artista. É onde se manifesta o seu enorme talento. A literatura, porém, não é seu campo, como não é a política. A cabeça política do Chico é oca.
Escrito sob a forma de diário, “Essa gente” procura inserir comentários políticos, que acentuam o primarismo da história e da própria visão política de Chico Buarque. Na página 35 do romance, por exemplo, Chico diz o seguinte:
3 de fevereiro de 2019: (...) Devo ademais te confessar que sinto falta de um amigo com quem partilhar meu inconformismo em relação ao que estão fazendo com nosso país. Será que ainda teremos nossa correspondência violada? Será que ainda incendiarão os nossos livros?
Chico produz uma crítica ao governo, atribuindo a ele violação de correspondência e queima de livros exatamente um mês depois de sua posse. Isso é fazer política? Fazer política é afirmar mentiras? Falar em livros incendiados e correspondência violada no Brasil é tanto mentira como uma baita falsidade histórica. Quem escreve isso não se respeita como escritor. Pior: não respeita seus leitores.
Na página 47, Chico insere, sem quê nem para quê, o que ele possivelmente vislumbra e simboliza como violência das elites contra as massas pobres e desamparadas.
Ele já está para embicar na rua quando freia, passa por mim às cegas (...) e se dirige a um homem deitado na calçada, encostado no muro do clube. É um sujeito com cara de índio velho que se levanta com dificuldade, depois de tomar uns chutes nas costelas. (...) Ao esboçar uma corrida, o índio derrapa e se escora no muro, de onde é arrancado pelo Fúlvio com um safanão que por pouco não o arremessa no asfalto. (...)
Note-se: Chico descreve, em duas páginas, com detalhes, a agressão covarde e absurda de um sujeito da classe alta, sócio do Country Club, a um mendigo. A agressão é gratuita, mas Chico achou por bem inseri-la – inclusive para dar no leitor um choque da nossa realidade cruel, onde representantes das elites surram mendigos nas ruas.
No livro do Chico não há assalto, não há arrastão, não há PCC, não há corrupção de políticos petistas (nem de qualquer outro partido). Há apenas, de um lado, a ação repulsiva das elites e, de outro, violência policial, essa sempre despropositada, como a que ele descreve na página 118:
Chegando ao pé da favela, os moradores fecham a avenida Niemeyer e interpelam aos gritos os policiais de plantão. Não demora a aparecer o reforço, um batalhão de choque com policiais mascarados e um veículo blindado com caveiras estampadas na carroceria. (...) Do nada, uma pedra, um palavrão, uma senha, não sei que fagulha desencadeia o conflito, e os escudos avançam contra os cartazes. Um provável líder comunitário ordena pelo megafone a recuada dos manifestantes, que começam a se dispersar na avenida. É tarde, porém, porque a tropa já lança mão de bombas de gás lacrimogênio, spray de pimenta, tiros de balas de borracha e golpes de cassetete no combate corpo a corpo.
Este é o cenário político desenhado por Chico, causado, como sói ocorrer no imaginário unilateral da esquerda populista, devido a morte de um morador superquerido de todos na favela. Vejam bem: Chico introduz no livro a morte de um trabalhador “superquerido” provocada pela ação da polícia repressora, o que resulta no conflito e na violência policial.
Afora o drama pessoal de Manuel Duarte, ao qual não soube dar dimensão psicológica e humana, Chico descreve o mundo tal e qual as esquerdas brasileiras o fazem: a luta entre os fortes e fracos, entre os opressores e os oprimidos. Polícia, na cabeça de Chico, somente prende e estropia pobres e miseráveis. Na página 119, ele acentua:
(...) Chegamos ao Sheraton, um hotel de luxo onde a polícia só entra se for à cata de favelados.
Ora, a frase é absolutamente tola, pois supõe a possibilidade de haver favelado no Sheraton. A frase não é verdadeira, pois a polícia, nos últimos tempos no Brasil, entrou em prédios de apartamentos e escritórios de luxo em busca de criminosos do “colarinho branca”, ao longo da operação Lava Jato. Aliás, atento à realidade brasileiro, nenhum personagem do Chico refere-se às prisões de políticos e empresários corruptos. Isso não cabe num livro que deseja apenas acentuar a luta entre ricos e pobres – e demonstrar que o governo está ao lado dos ricos, enquanto estes se dedicam a surrar e a esbodegar os pobres e negros.
A esquerda é contra a operação Lava Jato, que levou à cadeia inúmeros políticos do PT, entre os quais Lula, o enfant gâté da esquerda populista e dos artistas ipanemenses.
É claro que, tanto no plano literário como na vida real, a polícia invade os morros porque é lá que se esconde a bandidagem do tráfico, misturando-se à população ordeira e trabalhadora que lá reside. É evidente que há nas favelas assassinatos de gente do bem, mesmo de crianças. Aliás, este é um dos grandes dramas da vida urbana brasileira: nas favelas o crime mistura-se à paz, a bandidagem mistura-se aos residentes. Os conflitos armados são inevitáveis e esses, em alguns casos, produzem vítimas inocentes. É necessário considerar que nem sempre os conflitos são entre a polícia e a bandidagem; há ainda os conflitos entre grupos rivais da bandidagem, em busca de domínio hegemônico.
Se romance (gênero), como disse Lucien Goldman, em “Sociologia do romance”, é a transposição para o plano literário da vida cotidiana na sociedade, a complexidade dessa constitui o cenário essencial da trama. Chico preferiu escrever um romance linear, seguindo as palavras de ordem da esquerda atrasada.
Lionel Trilling, em “A mente no mundo moderno”, observou, citando Matthew Arnold, que literatura é crítica da vida – e que a crítica é o esforço para ver o objeto tal qual ele é em si mesmo. Objeto, no caso, seria o conjunto de ideias e, em particular, o conjunto de ideias sobre a sociedade. Uma obra literária, portanto, não pode ser uma espécie de cartilha política, mas a tentativa de refletir o real, com suas contradições e diferenciações. Enfim, a sociedade humana é complexa e não cabe em limites dicotômicos.
Chico demonstrou, mais uma vez, que possui cabeça antitética, ou seja, esquerda ou direita, bons e maus, branco ou preto, tudo sem nuances. Um dos maiores larápios dos recursos públicos, político que Chico apoiou por recomendação do Lula, residia em luxuoso apartamento do Leblon, possuía mansão em Mangaratiba e só se deslocava de helicóptero. Foi preso no seu luxuoso apartamento. Refiro-me ao ex-governador Sérgio Cabral.
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“Essa gente” é um livro confuso, cujas histórias (diários) dos personagens se confundem e embaralham. O enredo não tem a mínima consistência. Não causa nenhum tipo de emoção no leitor. É um livro frio e descoordenado. Falta-lhe densidade.
Pior de tudo é que Chico abusa de tolices para provar que a esquerda é o lado certo da luta social: há, no livro, o filho de militantes de esquerda que, por isso mesmo, sofre bullying na escola. Pior que isso, porém, é que há, no livro, um pastor evangélico da Igreja da Bem-Aventurança, ligado a um maestro italiano, que castra jovens pobres para abastecer o mercado internacional de canto lírico. Pode haver coisa mais gratuita? Ou mais estúpida? Ou mais fora de sentido?
O que impressiona no romancista Chico Buarque é a sua tendência de inserir passagens que visam unicamente chocar os leitores, como se isso garantisse a ele lugar de destaque na literatura brasileira. São passagens gratuitas, que não acrescentam nada à narrativa. Em “Estorvo”, livro de 1991, Chico descreve o momento em que uma criança de 5 anos faz um boquete no seu avô (Página 81). Em “Essa gente”, nos instantes que antecedem a sua morte, Manuel Duarte recebe, em delírio, a visita da mãe já falecida, que
Sentada na beira do sofá, ela abre os botões de pérola da sua blusa, me mostra os seios e os acaricia com lágrimas nos olhos. Depois levanta minha cabeça e com lábios gelados me beija a boca.
A verdade é que Chico Buarque não chega nem aos pés de Rubem Fonseca, Nelson Rodrigues ou Rafael Montes, para citar três autores realistas, cujas obras põem à nu a natureza violenta e mórbida dos homens, no sentido freudiano da expressão. Na verdade, Chico Buarque aproxima-se de Paulo Coelho, José Sarney ou José Mauro de Vasconcelos.
Chico, porém, tornou-se um ícone, em razão de sua música. Tornou-se um sujeito inatacável, por pior que fossem suas atitudes intelectuais, pessoais e políticas. Ninguém tem coragem de atacar o autor de “Carolina”, pois muitos têm medo das represarias, vulgo patrulhamento ideológico. Chico Buarque acostumou-se a ser paparicado e incensado. Em torno de Chico Buarque é possível ouvir um alarido de gralhas ruidosas.
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Chico foi um dos “intelequituais” que defenderam a censura ao livro “Roberto Carlos em detalhes”, de Paulo César de Araújo.
Chico defendeu a proibição do livro, o seu recolhimento das livrarias e do depósito da editora Planeta – e sua incineração, no melhor estilo III Reich. Chico ainda fez pior: em entrevista dada em Paris e em artigo publicado no Globo, Chico negou que tivesse dado entrevista a Paulo César de Araújo, o que transformava o autor da biografia de Roberto Carlos um criminoso, um mistificador, um falsificador. Contudo, Chico havia dado a entrevista a Paulo César de Araújo, como atestaram o filme e a gravação apresentada pelo último. Desmascarado, Chico apenas disse que tinha esquecido que dera a entrevista. Chico demonstrou, no episódio, falta de caráter, inclusive porque não pediu desculpas públicas pela – aí, sim - sua mentira.
O episódio de censura ao livro de Paulo César de Araújo reuniu, como defensores da censura e da queima dos livros, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Djavan, Lenine, Chico César, Paula Lavigne, entre outros. Foi um episódio triste, vergonhoso e sórdido. Hoje, o Velhote do Penedo leu um manifesto dos “intelequituais” de sempre, denunciando a censura no governo Bolsonaro – e lá estava as assinaturas de Caetano Veloso e Chico Buarque. Cinismo igual nunca vi, pois não presenciei, até agora, nenhum ato governamental no sentido de censurar qualquer obra literária. Vi, porém, Chico e Caetano defender a censura de “Roberto Carlos em detalhes”.
A participação de Chico no episódio nega-lhe qualquer direito de falar em censura. Falta-lhe credibilidade.
É preciso repetir que a cabeça política de Chico Buarque é oca – e suas opções se perdem em razão disso. Em 1978, por exemplo, Chico fez uma marchinha de apoio a Fernando Henrique Cardoso contra Franco Montoro nas eleições para o Senado. A marchinha aproveitava os acordes de “Acorda Maria Bonita”:
A gente não quer mais cacique/ A gente não quer mais feitor/ A gente agora tá no pique/ Fernando Henrique pra Senador.
Bem, FHC não foi eleito, mas é bom destacar que um político íntegro, decente, ético, um dos melhores políticos brasileiros, Franco Montoro, foi chamado por Chico Buarque, com o beneplácito de FHC, de “cacique” e “feitor”. Quem contou esse episódio foi Deonísio da Silva, em “A placenta e o caixão” (Página 372).
Em 1982, Chico fez campanha para o candidato Miro Teixeira, na época menino de recados do Chagas Freitas, uma espécie de Antonio Carlos Magalhães carioca, embora o PT tivesse o seu próprio candidato, Lysâneas Maciel.

Mais “Essa gente”: em detalhes

O Velhote do Penedo arrola em seguida alguns escorregões e jaboticabas de “Essa gente”.
·        O Fúlvio praticamente ordena que eu me acomode no banco de trás, e a esposa a seu lado está com os olhos inchados, uma caixa de lenços de papel no colo. É uma senhora que antes de engordar deve ter sido bem bonita. (Pág. 37)
A última frase do parágrafo denota claramente uma visão preconceituosa do Chico: a mulher de Fúlvio, quando magra, era bem bonita; engordou deixou de ser. As gordas são feias, segundo a lapidar frase de Chico Buarque.
·        Ficamos um tempo nos estudando, e acho graça de ele se parecer comigo em alguns pormenores, até o de guardar o pau do lado direito da calça. (Pág. 42)
O pormenor destacado era dispensável e grosseiro. Escrito apenas para chocar o leitor. Como tantas coisas em “Essa gente”, uma frase tola, vulgar e sem sentido.
·        Clubes de elite em toda parte têm lá suas regras rígidas, e que um novo-rico entre no Country Club, por exemplo, é mais fácil um camelo passar no cu da agulha. (Pág. 44)
Chico Buarque transformou uma imagem bíblica numa imagem vulgar. Qual o objetivo? Chico usa tais expressões apenas para chocar o leitor. A expressão “cu da agulha” não consta do “Dicionário do palavrão e termos afins”, de Mário Souto Maior, nem do “Dicionário de expressões coloquiais brasileiras”, de Nélson Cunha Mello. Foi uma invenção com a chancela Chico Buarque. Nos quatro evangelhos, a expressão usada é “fundo da agulha”.
·        Não preciso ver para saber que pessoas se jogam de viadutos, que urubus estão à espreita, que no morro a polícia atira para matar. (Pág. 48)
É preciso comentar?
·        O sargento Agenor é um negro bonito de presumíveis quarenta anos, se bem que os da sua raça geralmente parecem mais jovens do que são. (Pág. 60)
Os negros, segundo Chico Buarque, reúnem características biológicas (envelhecer é biológico, não?) diferentes dos brancos. Usei os termos do livro: negro e raça.
·        Deve estar faminto, pois agora abocanha o jornal no chão do banheiro e começa a mastigar notícias: soldados disparam oitenta tiros contra carro de família e matam músico negro. (Pág. 89)
Mais uma vez, Chico acentua a visão da polícia como força armada das elites contra o povão.
·        Assim o conduzo sutilmente pelas ruas do Leblon, como no passado conduzia pela nuca mulheres pequenas, que em geral não têm senso de direção. (Pág. 106)
Chico criticou “as mulheres que antes de engordar eram bonitas” (página 37), o negro “cuja raça faz com que eles pareçam mais jovens” (página 60) e, agora, fala das mulheres baixas, “que não têm senso de direção”. Se isto tudo não carrega uma carga de preconceito, não sei o que dizer.
·        Pode falar as maiores sandices, se calhar pode jurar por Deus que a Terra é plana. (Pág. 108)
Aqui, Chico Buarque repete uma bobagem inventada e atribuída a um “inimigo político” por algum cômico ou filósofo da esquerda velha e populista.
·        Laila acredita que o ambiente no país em breve se tornará insuportável para gente de esquerda como ela e intelectuais em geral como eu. (Pág. 149)
Muitos sujeitos da esquerda, como Chico, que vive em Paris, estão saindo do país. O texto de Chico é absolutamente elitista, pois nem todos têm condições de sair do Brasil.
·        Comia qualquer besteira na cozinha e voltava para a cama, dormia, dormia, dormia noite e dia, sonhava com o presidente da República, só tinha pensamentos mórbidos. (Pág. 170)
Somente um sujeito sem compromisso com sua obra é capaz de escrever tal infantilidade.
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Embora tenha muito o que ainda mostrar, o Velhote do Penedo encerra a crítica ao livro “Essa gente”, de Chico Buarque.
É um livro pobre, sem grandeza, escrito às pressas, que repete tolamente o discurso da esquerda atrasada e populista sobre a realidade brasileira. É um livro em que as ideias se contradizem: Chico faz tudo para provar que a polícia (braço armado das elites) ataca e mata apenas o povão, mas afunda no preconceito quando fala das idosas gordas, do negro e das mulheres baixas (que, por serem baixas, não têm senso de direção).
No Brasil, todos os sujeitos que se dizem de esquerda afirmam que lutam por altos valores, mas nada dizem acerca dos baixos valores na Venezuela, Cuba e Coreia do Norte.
Chico poderia ter feito um livro de qualidade, até mesmo engajado, caso não tivesse sido dominado por palavras-de-ordem e uma visão ridiculamente primitiva da realidade brasileira. É um livro sem densidade filosófica - e politicamente chulo.
Não o leiam: não vale a pena. Eu o fiz por deve de ofício.

sábado, 1 de fevereiro de 2020

A mídia tropeça quando fala em cultura


Diário do Velhote do Penedo (6)

Afinal, o que é cultura?
De acordo com a mídia brasileira, cultura é a soma dos mecanismos públicos que financiam espetáculos mais os que fazem tais espetáculos. Ou seja, cultura seria nada mais que o produto da soma da lei Rouanet com alguns atores da Globo. Outro dia, a jornalista Zileide Silva especulou: “será que a secretária Regina Duarte terá condições de conter a reação da cultura? O raciocínio da jornalista é trevoso, mas é evidente que ela não tem a menor ideia do que seja cultura. A jornalista falou como se cultura fosse um bicho que cospe, morde e vomita.
Há inúmeros livros que tratam do conceito de cultura. Muita gente – principalmente a gente da mídia que se arvora debater o assunto – faria bem se lesse pelo menos um deles. Seria um bom começo. Ler não dói – e é útil.
Cultura é a síntese dos saberes sociais – e se propaga pela sociedade através de seus membros individuais e coletivos, segundo as mais variadas formas e manifestações. Numa sociedade diversificada, as manifestações culturais seguem padrões e estilos diferenciados, ricos e complexos. Elas, porém, interagem: cada uma delas influência mais ou menos as demais.
Há povos, contudo, cuja cultura material é simples, pois sua estrutura social é também simples. É o caso, por exemplo, do povo Nuer, cerca de duzentas mil pessoas que vivem na região pantanosa do Sudão meridional, entre os rios Sobat e Bahr el Ghazal, tributários do Nilo. Os Nuer foram estudados pelo antropólogo britânico Edward Evans-Pritchard (1902-1973), a pedido do governo do Sudão.
Os Nuer são eminentemente pastoris – e definem todos os processos e relacionamentos sociais em função do criatório. Não praticam a escrita nem a pintura. Seus cantos e danças estão vinculados aos animais. Seu idioma social, conforme Pritchard, é um idioma estruturado e referenciado ao idioma bovino. Tanto nas negociações matrimoniais, como nas situações rituais e disputas legais, só serão compreendidas através de um terminologia de cores, idades, sexos dos animais. São padrões culturais à sua maneira – e são eles que garantem a coesão social do grupo.
Na sociedade brasileira, a compreensão do que seja cultura deve ser complexa, generalizada e diversificada, tal como é a organização social do país. Somos um país que sofreu as mais variadas influências durante sua formação desigual – e do amálgama e combinação de tais influências resultou o que somos. Dos indígenas achados por Cabral, aos negros escravos trazidos à força para o Brasil, aos portugueses, aos milhões de imigrantes de todas as origens, todos trouxeram os seus saberes herdados – e aqui, através de um processo simbiótica, criaram o que chamamos de cultura brasileira. Um exemplo: o chorinho, estilo de música dolente e “choroso”, foi criado por imigrantes portugueses, saudosos de sua terra.
Cultura é a expressão da vida humana em sociedade, através de variadas e múltiplas manifestações. Alceu Maynard Araújo, em “Cultura popular brasileira” estuda as mais variadas formas de manifestações da cultura brasileira – festas, bailados, danças, folguedos, músicas, ritos, sabenças, linguagem típica, lendas, ates, cozinha regional e popular, trajes. Maynard mostrou ainda as características e diferenças dos principais acontecimentos da cultura popular, das festas do Divino (que mereceram ainda um excelente estudo de Fernando Oliveira de Moraes, “A festa do divino em Mogi das Cruzes”) ao ritual de preparação do espinhaço da ovelha.
A chamada cultura urbana, sofisticada, de classe média, a cultura defendida por gente dependente de recursos públicos para realizá-la, é apenas um parcela ínfima do que podemos chamar de cultura. Talvez não seja sequer a mais importante. Câmara Cascudo escreveu dois livros, entre muitos outros, que dão a dimensão de como gente do povo, de baixa instrução formal, são capazes de executar verdadeiras obras de arte e construir instrumentos do seu trabalho: “Jangada – uma pesquisa etnográfica” e “História dos nossos gestos”. Câmara Cascudo é um autor esquecido pelos cursos de sociologia e antropologia das nossas universidades, sempre subservientes aos autores franceses da moda. Quando a atriz Fernanda Montenegro vincula cultura à educação (formal, diga-se), ela não sabe o que diz, pois cultura não é privilégio dos letrados. Os iletrados também fazem cultura – tanto é assim que os indígenas cultivam danças, cantos, cestaria, maneiras de ser, lendas. Ou isto não é cultura?
Li, recentemente, o livro “As pastorinhas de Pirenópolis”, organizado por Lênia Márcia Meagelli e Neide Rodrigues Gomes, que recomendo. As pastorinhas é um auto representado, como diz o título, na cidade de Pirenópolis, Goiás, por ocasião das não menos tradicionais comemorações da Festa do Divino Espírito Santo. Auto é uma composição teatral, surgida na Idade Média, na Espanha, por volta do século XII. A linguagem do auto é simples. Suas personagens simbolizam as virtudes, os pecados ou representam anjos, demônios e santos. “As pastorinhas de Pirenópolis”, cabe destacar, independe de recursos públicos e da lei Rouanet para existir: vive da contribuições dos moradores da cidade. Foi encenada pela primeira vez, em 1922.
Cabe, por fim, chamar a atenção para três clássicos: o primeiro, só encontrável em sebos, “Mutirão”, de Clóvis Caldeira, no qual ele estuda o esforço de ajuda coletiva que prevalecia (hoje, menos) nos interiores do Brasil.
O segundo, “Hans Staden”, para o qual existem edições mais recentes. “Hans Staden” é a história de um marujo alemão, que sobreviveu a um naufrágio no litoral paulista e foi aprisionado pelos tupinambás, que tinham por hábito comer (devorar) seus prisioneiros. Em pânico, Staden sobreviveu à prisão, mas escreveu sobre os costumes e rituais (culturas) dos tupinambás. Staden nunca soube por que os seus captores o pouparam, mas legou a todos nós um livro que, segundo Monteiro Lobato, deveria estar presente em todas as nossas escolas. Infelizmente, o conselho de Lobato não foi atendido – e poucos brasileiros conhecem o livro.
Por fim, outro livro raro: “O dialeto caipira”, de Amadeu Amaral, que demonstra de forma indiscutível uma das tantas línguas faladas no Brasil. É uma joia.