O Brasil
precisa de um projeto de educação
No começo, a riqueza vinha da terra
e da mão-de-obra escrava. A terra era fértil, farta e generosa – em tal maneira é graciosa que, querendo-a
aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem, disse Pero Vaz
de Caminha.
Primeiro, extraiu-se o pau-brasil.
Depois, plantou-se cana e exportou-se açúcar para um mercado europeu sequioso
do produto. Em seguida, descobriu-se ouro e pedras – e o eixo econômico
deslocou-se da faixa úmida do nordeste para o centro-sul, em busca da riqueza
amarela. Surgiram cidades, esboçou-se a formação de uma classe média,
criaram-se os caminhos ligando o litoral ao interior.
E veio, então, o algodão, as drogas
do sertão, o fumo, o café, o látex. O Brasil formava-se através de ciclos. A
pecuária desbravou o sertão. Matas e florestas – imensas, sem fim, ricas em
madeira, plantas e animais e aves - foram derrubadas, processo, aliás, que
continua até hoje. Rios foram percorridos e, mais tarde, poluídos. O território
ia, aos poucos, sendo vencido e ocupado, aos trancos e barrancos. Os naturais
da terra, os indígenas, eram extermidos, tal como acontecia em outros
continentes.
Nesse começo, bastavam apenas a
terra e a mão-de-obra escrava, que era importada, a ferro e fogo, da África.
Após a longa viagem num porão sem luz, fétido e entulhado, onde a maioria
morria no trajeto, o escravo sobrevivente descia acorrentado do navio negreiro,
era adquirido por uns quantos dobrões, recebia uma enxada – que ele não
conhecia – e, com a força dos seus músculos e a fertilidade da terra, começava
a produzir riqueza. Riqueza que a globalização da época levava para a Europa.
Mais tarde, a riqueza produzida no
campo – ou seja, o capital primitivamente acumulado com base na força de
trabalho do negro escravo - transferiu-se para as cidades e a industrialização
exigiu que o trabalhador livre tivesse não apenas músculos, mas um mínimo de
qualificação, um mínimo de saber fazer.
Os imigrantes – gente vinda da Itália, Espanha, Japão, Alemanha, de muitas
outras terras d’além mar – trouxeram
parte desse conhecimento, que foi aproveitado nas indústrias nascentes e na agricultura
que abastecia as cidades de alimentos e fornecia matéria-prima que as atividades
fabris exigiam.
O nordestino, tal e qual o imigrante
estrangeiro, também se deslocou de suas terras e, em São Paulo, logo aprendeu a
ser pedreiro ou, caso soubesse ler, alguns ofícios que o qualificavam como
operário. Tornaram-se metalúrgicos, ferramenteiros, torneiros, mecânicos, operários
da construção civil. Imigrantes e nordestinos provaram possuir mãos hábeis -
mãos que sabiam aprender ofícios repetitivos. Mãos treinadas: era o que bastava
para criar a nova riqueza.
Nas últimas décadas, porém, tudo
mudou. Uma nova realidade surgiu. O mundo se integrou, as distâncias se
reduziram, a Internet foi criada, o conhecimento e a inovação tornaram-se
fatores de produção – tão importantes quanto o capital, a matéria-prima e a
mão-de-obra. Em lugar do operário, cujas mãos treinadas e hábeis não eram mais
suficientes para a criação de riquezas, a economia passou a exigir agora o
operador e o técnico. Duas categorias de trabalhadores capazes de manipular
equipamento digital e manejar, à distância, máquinas robotizadas. Trabalhadores
capazes de exercer atividades complexas. Trabalhadores que soubessem manusear e
regular equipamentos e máquinas modernas. Trabalhadores, enfim, que tivessem
recebido uma formação educacional, que o possibilitassem a resolver problemas,
propor soluções e dominar técnicas sofisticadas.
Se o escravo tinha os músculos, se o
operário nordestino e o imigrante tinham mãos hábeis, o novo trabalhador
precisa ter familiaridade com a operação de equipamentos digitalizados – o que
significa que, além de habilidade, ele deve possuir amplos conhecimentos, da informática
ao inglês. Aos poucos, mas de forma inexorável, os operários tradicionais e os
gerentes estão sendo substituídos por uma nova classe de trabalhadores e
líderes qualificados, capazes de lidar com as inovações tecnológicas que revolucionam
permanentemente os métodos de trabalho e os sistemas produtivos. Hoje, sem essa
nova classe de trabalhadores e gerentes, a economia simplesmente não funciona.
Pára. Cai no atoleiro. Um país só participa da corrida pelo desenvolvimento com
inovação e profissionais qualificados.
Todos dizem, e todos estão certos,
que a educação tornou-se o fator determinante do processo produtivo e do
próprio sistema de garantia de emprego e renda. O escravo era analfabeto, mas
isto não o impedia de plantar cana e catar ouro nas minas gerais. O operário de mãos hábeis sabia pouco mais que ler,
mas a natureza do seu trabalho não exigia mais que isso. O operador e o
técnico, contudo, precisam ter um nível de conhecimento elevado, precisam ter
uma formação especial, senão serão incapazes de enfrentar os desafios do mundo
moderno e da geração da riqueza.
Nesse contexto, o Brasil vive, hoje,
um grave paradoxo: possui uma imensa massa de desempregados (que os dados
oficiais escamoteiam), enquanto fábricas, serviços e setores específicos têm um
acervo enorme de vagas não preenchidas por falta de operadores e profissionais
qualificados. Segundo José Pastore, os casos mais eloquentes são os dos setores
petroquímicos, sucroalcooleiro e da construção civil. O antigo presidente da Petrobrás,
José Sérgio Gabrielli, manifestou-se preocupado com a falta de profissionais qualificados,
circunstância, segundo ele, que pode dificultar ou, mesmo, impedir a adoção dos
projetos da empresa. Os produtores de cana-de-açúcar e etanol têm reclamado
contra a carência de pessoal que enfrentam – e argumentam que apenas um terço
dos trabalhadores disponíveis tem condições de operar e fazer ajustes nas modernas
máquinas computadorizadas que estão entrando no setor. Por fim, os empresários
da construção civil têm dito seguidamente que há escassez de mão-de-obra qualificada.
O setor de confecções de roupas possui, hoje, 50 mil vagas não preenchidas por
falta de mão-de-bra qualificada. Nos dias atuais, as modernas máquinas de
costura são programadas por computador, e raras são as trabalhadoras capazes de
manipular tais equipamentos.
Além desses setores, outros tantos
também padecem da mesma carência de recursos humanos. O mercado brasileiro de
tecnologia da informação alcançou um crescimento expressivo, mas padece da
falta de mão-de-obra qualificada. Segundo dados da Associação Brasileira de
Empresas de Software (Abes) e da Manager Assessoria de Recursos Humanos, há, no
momento, um déficit de 50 mil profissionais no mercado, que poderá evoluir para
200 mil até 2015.
O Brasil precisa aproveitar as
oportunidades que as circunstâncias históricas estão oferecendo, mas o
desenvolvimento brasileiro esbarra nos efeitos danosos de uma educação, em
todos os níveis, de baixa qualidade, ministrada, com as exceções de praxe, em
escolas inadequadas e sem equipamentos e bibliotecas. Crescemos pouco e lentamente
nos campos da ciência, da tecnologia e da inovação, mormente porque carecemos
de recursos humanos qualificados em número suficiente para situar o Brasil na
luta pela produção e pelo domínio do conhecimento. Certo dia, o presidente Lula
repetiu um slogan do tempo da ditadura: “o Brasil é um país que vai para
frente”. Só esqueceu-se de dizer uma coisa: mas com o freio de mão puxado.
Em termos educacionais, o que se
discute, o tema que excita a todos, é a crise e a reforma universitária, o
regime de cotas e outras tantas novidades criadas pelos tecnocratas e ideólogos
do ensino. Embora extremamente relevante, pois a universidade brasileira,
sobretudo a pública, encontra-se, com as exceções de sempre, semidestruída e
semidesmoralizada, esta não é o único – nem o principal - portal de entrada de
uma discussão séria sobre a educação brasileira. Tal discussão deve começar
pelo ensino fundamental e médio, onde a sociedade e o governo brasileiro
deveriam estar investindo tempo, energia e dinheiro.
De que adianta reformar a
universidade se grande parte do alunado que a alcança traz na sua formação as
mazelas e taras de um ensino fundamental e médio de baixíssima qualidade?
Todos, pais e professores, têm experiência direta ou indireta nesse assunto.
Todos sabem que muitos dos discentes que chegam às faculdades, centros universitários
e universidades públicas e privadas são verdadeiros analfabetos funcionais, incapazes
de redigir, sem erro e com lógica, um simples bilhete. O pior que a maioria sai
da universidade da mesma maneira, embora com um canudo na mão. Outro dia, um
professor do curso de engenharia da UFRJ disse algo desconcertante: o primeiro
semestre do curso ele gasta ensinando aos alunos coisas elementares, como regra
de três e equação de primeiro grau, que os alunos não aprenderam na escola.
Nenhum exagero nisso. A UNESCO
verificou que 50% dos alunos brasileiros estão abaixo da escala de verificação
no domínio dos rudimentos básicos da leitura e da aritmética. Entre 41 países
estudados pelo organismo, o Brasil ficou em 37º lugar na prova de leitura e em
último na prova de aritmética. Antes, em 1992, um teste (questões de matemática
e ciências) que reuniu vinte países, num total de 4.000 escolas e 157.000
estudantes, evidenciou a fragilidade do ensino brasileiro. No Brasil, foram
selecionadas 110 escolas na cidade de São Paulo e 110 em Fortaleza. O resultado
do teste foi, no mínimo, acachapante: os estudantes brasileiros só superaram os
de Moçambique, um país solapado pelo colonialismo e por anos de guerra civil.
Ora, se os indicadores de avaliação dos alunos brasileiros de ensino fundamental
e médio são tão pífios, como estes alunos poderiam ser bons alunos no curso superior?
A maioria dos alunos universitários
não lê – e não lê porque não adquiriu o hábito e o gosto da leitura. Pudera:
sabe-se que 80% dos docentes do ensino primário e médio jamais leram um livro.
Como vão transmitir aos seus alunos um hábito e um gosto que – eles, professores
– não possuem? A reforma do ensino fundamental e médio, que não está na ordem
do dia, é tão ou mais prioritária e indispensável que a reforma universitária.
Os alunos que chegam ao ensino
superior possuem, devido à falta de leitura, um vocabulário extremamente pobre
– daí sua incapacidade de formular conceitos organizados e idéias razoavelmente
estruturadas. Os alunos, em geral, são incapazes de fazer o resumo de uma
página que acabaram de ler, ou de ir até o final de um livro – isso, claro,
quando tomam um livro nas mãos, o que é raro. A ausência de qualquer atividade
intelectual autônoma criou nos estudantes uma espécie de indolência mental, que
os impede de construir e externar bons pensamentos, ou seja, idéias organizadas
e estruturadas.
Bem verdade que o baixo nível
cultural dos universitários não se explica apenas pela sua má formação de base.
A má qualidade dos cursos superiores (ineficácia e programas defasados), a
ausência de laboratórios equipados, a insuficiência das bibliotecas, a carência
de bons professores e a falta de espírito universitário e desinteresse pelo conhecimento,
principalmente nas instituições privadas, entre outros fatores, potencializam
as sequelas que os estudantes trazem dos cursos fundamentais e médios das escolas
brasileiras.
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Agora, com vocês, Noel Rosa, o Poeta da Vila. Viveu apenas 27 anos e compôs mais de 250 canções, entre elas "Filosofia".
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