domingo, 27 de agosto de 2017

Vamos mirar o alvo certo


Quando trabalhei no governo Cristovam Buarque, fiz, um dia, análise do orçamento do DF. Descobri, então, que 60% dos gastos giravam em torno da praga chamada automóvel, caminhões, ônibus, por aí. O cálculo foi simples: somei quanto custava o DETRAN, a Secretaria de Transportes, os serviços e obras de construção, manutenção e recuperação de ruas, estacionamentos públicos, de semáforos (incluí cortes e poda de árvores que atrapalham a visão), pardais. Afora isto, admiti um percentual dos gastos em segurança (guardas de trânsito). E fui por aí – juntando gastos e despesas.

Todos nós reclamamos dos serviços públicos: a educação pública é ruim, escolas caem aos pedaços; a saúde pública é precária, os hospitais são carentes. A segurança é péssima, os transportes coletivos são uma vergonha. Eu, por exemplo, moro em Brasília, na Asa Norte, e padeço dois dias semanais de racionamento d'água, afora os eventuais apagões. Mas o Governo do Distrito Federal está fazendo, no final da Asa Norte, uma obra enorme, que envolve ponte, viadutos, abertura de pistas, obra que se destina a facilitar o escoamento do tráfico no sentido Lago Norte, Sobradinho e Granja do Torto. Ninguém reclama do racionamento, mas li elogios à obra, apesar dos transtornos e dos custos.

A verdade é que temos uma visão distorcida da relação cidadania/prioridades/gastos públicos. Não levamos em conta que as receitas são limitadas, mas achamos que são infinitas quando estão relacionadas com as nossas prioridades. Prioridades “nossas”, ou seja, de classe, pois queremos ruas e estradas “europeias”, que facilitem no “nosso” deslocamento. E isto custa - como constatei - 60% dos gastos do Distrito Federal. O que sobra é destinada às prioridades “gerais”. Não sei se fui claro.

Hoje, todos culpam a corrupção pelas nossas desgraças, mas os nossos males possuem outros componentes piores: a citada relação cidadania/prioridades/gastos públicos é um deles. A corrupção é erva daninha, deve ser combatida, os larápios devem ser presos. Mas a corrupção sozinha não explica o que somos.

Apesar do racionamento d'água (minha casa: dois dias/semana), vejo por aí os lavajatos funcionando a todo vapor: a população do DF é da ordem de três milhões de habitantes; a frota de automóveis é superior a 1,5 milhão, o que dá um carro/duas pessoas. Contudo, um estudo local revelou que a média de veículos por família é de 4,2 carros. Isto significa que a frota de carros de Brasília pertence a menos de 15% da população. Vejam: uma obra faraônica está sendo feita, a lavagem de carros é absurda, o gasto de água incalculável – mas disso ninguém  reclama. É uma das faces cruéis da relação cidadania/prioridades/gastos públicos. Pior ainda: 60% das despesas orçamentárias do DF beneficiam 15% da população.

A verdade é que não percebemos privilégios como esse. E como não percebemos, convivemos com eles. Às vezes somos induzidos a desviar nossa atenção para outras questões, que, a rigor, são menos graves que aquelas que não percebemos. Dou um exemplo: li, no facebook e na mídia, imprecações contra os 3,6 bilhões que seriam destinados aos partidos políticos. O Velhote do Penedo também é contra, embora aquela quantia represente menos de 0,09% do orçamento federal – e menos de 1% dos 458 bilhões de desonerações concedidos por Dilma desde 2011.

Eu ia escrever hoje sobre as perdas que sofremos com a redução da hora-aula de 60 para 50 minutos. Prometi a alguns amigos, a quem peço desculpas. Escreverei na terça.

Penedense não vota no Lula!

domingo, 20 de agosto de 2017

De dez em dez minutos, ampliamos o déficit cultural


No passado, a criança ia para colégio aos sete anos. Dos sete aos onze, ela cursava o primário (quatro anos) e o admissão (um ano) – espécie de curso preparatório para o ginásio (outros quatro anos). O jovem, portanto, concluía o ginásio com quinze anos. Aí tinha que fazer uma opção: ou ia para o clássico ou para o científico. Eram três anos – de modo que o jovem concluía o ciclo com 18 anos. Estava apto para entrar na faculdade. O Velhote fez o curso clássico porque queria estudar sociologia, humanas. Se ele quisesse estudar física, faria o curso científico. A Reforma Passarinho bagunçou tudo isso. Mas o Passarinho - e sua turma de tecnocratas - não entendia nada de educação. Tinham apenas a força para impor sua reforma.

Fiz o curso primário no Colégio Santo Antônio Maria Zaccaria, escola privada dos padres barnabitas. O ginásio e as duas primeiras séries do clássico, no Colégio Sousa Aguiar, escola pública. O último ano do clássico fiz no Pedro II. No Sousa Aguiar, tive excelentes professores: Paulo Ronái (ensaísta, tradutor, introdutor de Balzac no Brasil, pai da jornalista Cora Ronái); Orlando Valverde (geógrafo, conferencista, autor de livros sobre a Amazônia); Bella Josef (especialista em literatura latino-americana, com livros publicados em diversos países do nosso continente); Almir Câmara de Matos Peixoto (um sábio: com quem, nas aulas de redação, aprendi a escrever); Ernesto Faria (latinista, autor do melhor dicionário de latim, hoje só encontrável em sebos); Leodegário Amarante de Azevedo Filho (da Academia Brasileira de Filologia, organizador da obra de Cecília Meirelles, autor de um belo livro sobre Camões); Edmundo Moniz (autor de “A guerra social de Canudos”, “D. João e o surrealismo” e “O espírito das épocas”, editorialista do “Correio da Manhã”); Silvio Edmundo Elia (latinista). No Pedro II, fui aluno de uma das maiores autoridades em literatura, o acadêmico Álvaro Lins (autor de um excelente estudo sobre Roquette-Pinto e da série “Jornal da crítica”, sete volumes). Hoje, duvido que possamos encontrar na escola pública professores tão qualificados como os que foram citados – afora os que ficaram fora da minha lista, como Antônio José Chediak, Fernando Parga e Sylvio Guadagny.

Naquele tempo, só para dar um exemplo, tínhamos seis horas semanais de português e outros seis de matemática. A hora/aula tinha 60 minutos e, não, 50 minutos, como é hoje. Essa redução foi – como direi - uma “conquista” discutível do movimento sindical dos professores.

Agora, entendam: em nome de não sei quê direito, ao invés das 360 horas/aula de português e de matemática semanais, passou-se a ter 300 horas/aula de cada disciplina. Dito de outra forma: com a incorporação da “conquista”, do “direito” dos professores, todos os estudantes perderam, por semana, uma hora de aula em cada disciplina.

Imaginem o déficit de conhecimento que isso acarretou. Quantos milhões, bilhões, trilhões de minutos de aula, de transmissão de conhecimento, se esfumaram ao longo do tempo, e vão continuar a se esfumar – em nome de um “direito”, uma “conquista” no fundo bizarra de uma corporação?

Reconheço que, como professor, desfrutei do “direito”, sem nunca me ter dado conta de que ele era, no mínimo, extravagante. Considero esse “direito” uma aberração, um privilégio. Fiquei velho.

O que eu quero dizer, em resumo, é o seguinte: dez minutos a mais de aula não mata ninguém - professor ou aluno. Mas se a hora/aula voltasse a ser de 60 minutos, a relação ensino-aprendizagem seria substancialmente acrescida. O tempo de aprendizagem se ampliaria.

Não sei se hoje com computadores, celulares, redes sociais, facebook, internet, o ensino melhorou. Eu suponho que não, pois no passado os estudantes tinham que fazer um esforço enorme para estudar e investigar - e isso o obrigava a ler, a ir a bibliotecas, a fazer consultas, a escrever, a desenvolver capacidades de análise, a refletir, a trabalhar em grupo. Nos dias atuais, basta consultar o Google. E imprimir. Solitariamente. Depois reclamam do número crescente e assustador de analfabetos funcionais no país. Afora, a quantidade absurda de feriados que atravancam o ensino no Brasil.

(Aproveito para contar um episódio: certa vez mandei meus alunos lerem um livro da literatura brasileira. Eram 40 alunos. Distribui quarenta títulos, um para cada aluno. Eles teriam que escrever uma resenha. Um aluno, que sentava no fundo da sala, entregou-me a resenha – que claramente não era dele. Procurei no Google – e bingo! Em sala, elogiei o trabalho dele, mas pedi que me desse o significado de cinco palavras que ele “usara” no texto. Claro, ele não sabia. Dei-lhe zero, inclusive porque não lera o livro. Hoje, esse menino, que desistiu de ser jornalista, é baterista de uma banda heavy metall. Houve outros casos de cópia, mas basta o exemplo).

Enfim, acho que as corporações adoram falar em direitos, em conquistas, sem perceber que muitos são, a rigor, privilégios corporativos. Mas isto é outra história, outra discussão.