quinta-feira, 11 de junho de 2020

Folha Corrida (1)


Parte da minha vida foi gasta na militância política da esquerda. Sim, eu acreditei sinceramente no ideal socialista, mas, aos poucos, tomei conhecimento do socialismo real e aí – meu mundo caiu.
Afastei-me da militância aos poucos, na medida em que perdia a crença num modelo de governo que não deu certo em lugar nenhum do mundo. Foi um processo – e reconheço que ele foi doloroso, muito doloroso, pois eu o vivi sozinho, sem procurar apoio de ninguém, uma espécie de purgação a que não faltaram lágrimas e ranger de dentes. Muitas. Muitos.
Ser de esquerda me fez conviver com gente valorosa, destemida, altruísta, que dedicou a vida a um sonho, e com gente imbecil e desonesta - mas, à força da ideologia, suportei. Era o jogo. Quando o socialismo pereceu na URSS, fui procurar um comunistão da velha guarda em busca de consolo. Era meu amigo e eu o admirava. Encontrei-o de pijama, sozinho, barba por fazer, um copo na mão, quase bêbado. Abraçou-me e disse: “O socialismo é a vida, não esqueça jamais disso. Nós é que fomos uns grandes filhos da puta! Nós estragamos tudo! Tudo!” E abriu o berreiro. Entendi, despedi-me, fui embora.
A verdade é que o socialismo começou a desabar quando os crimes de Stálin vieram à tona. Foi o primeiro grande baque da história do socialismo. Stálin era tido como uma espécie de deus, o ser perfeito, o guia genial dos povos, o paizão querido de todos. Mostrou-se, contudo, ser um reles criminoso, responsável pela morte de milhões e por criar uma burocracia tirânica e corrupta, que ele controlava por meio dos organismos de defesa do Estado. O mito de Stalingrado, que suportou com bravura inexcedível a violência e a crueldade das tropas alemães, ajudou-o a reafirmar lendas a seu respeito. Na realidade, em Stalingrado o grande herói foi o povo soviético, que a tudo suportou.
No Brasil, o PT – e seus puxadinhos, Psol, PSTU, entre outros – ajudou a desmoralizar a esquerda. Ao chegar ao poder, o PT trazia a imagem de partido nobre, incapaz de fazer concessões, de roubar, de ludibriar o povão. Todos diziam, e todos estavam errados, que o PT era um partido ético. Após 16 anos no poder, o PT disseminou a ideia de que a esquerda significa o que de pior há na política. Esquerda tornou-se sinônimo de incompetência, má-fé e roubalheira. Lula transformou-se, por atos e palavras, no malfeitor que todos conhecemos.
As esquerdas brasileiras não possuem um projeto para o Brasil. E não têm por que não conseguem se libertar de determinados dogmas. Antes da derrocada do socialismo, a esquerda brasileira tinha nos países socialistas os seus modelos. O PCdoB tinha na Albânia, o país mais pobre da Europa, o seu arquétipo – e, em Enver Hojda, um assassino, o seu herói. Hoje, que as chagas do processo histórico brasileiro ficaram evidentes, as esquerdas são incapazes de dizer como pretendem tirar o Brasil do atoleiro. Um líder da esquerda brasileira disse, certa ocasião, que um projeto nacional tinha que se assentar em dois pilares: aumento do salário mínimo com base no índice da inflação e investimentos estatais maciços. Falou isso – e foi embora, certo de que tinha descoberto o caminho para as Índias.
Certa vez, em Cuba, eu e o professor da Universidade Federal de Pernambuco, Manoel Corrêa de Andrade, autor de obras clássicas no campo da geografia agrária, entramos numa padaria – e levamos um susto. Não havia produto algum exposto. Queríamos comprar pães. A funcionária (pública) nos disse: “Só fazemos pão pela manhã. E não muitos, para não sobrar”. Já imaginaram uma economia inteira funcionando dessa maneira?   
Perdi a crença na política. Não convivo com políticos. Hoje, creio que o melhor dos mundos seria um mundo sem política e políticos. Sei, porém, que isso é impossível, a vida e os clássicos da sociologia me ensinaram. Quando aqueles tresloucados assumiram o comando de quatro aviões – e os atiraram contra as torres gêmeas de Nova York, o Pentágono e um campo florido do estado da Virgínia (porque os passageiros se insurgiram contra o sequestro), matando milhares de pessoas, cheguei à conclusão que o mundo enlouquecera – melhor: que estava irremediavelmente doente. Dois dias depois, aqui em Brasília, encontrei com um jornalista, petista roxo, que me disse: “O império vai desabar! Foi só o início!” Dias depois, Bush enviou tropas para o Oriente Médio, bombardeou impiedosamente o Iraque e a Líbia, praticamente riscando-os do mapa. Tempos depois, durante o governo Obama, tropas americanas localizaram Osama bin Laden, o mentor do ataque aos Estados Unidos. Não houve papo: passaram ele, as mulheres, filhos e capangas nas armas. Pronto, o império que ia desabar, vingara-se. Foi a lei do mais forte, que é a lei que predomina nas relações entre nações.
Falei sobre o meu amigo jornalista, petista roxo, e me lembrei que vivemos nos dias atuais um período de carência jornalística. Sempre fui um leitor de jornais. Lá, em casa, líamos quatro jornais diários: Última Hora, Diário da Noite, Correio da Manhã e Jornal do Brasil. Afora, claro, os jornais “comunas”, semanários: A classe operária (do PCdoB) e Novos Rumos (do PCB, vulgo Partidão), que meu pai considerava – e eram -  duas porcarias. Em matéria de política internacional, líamos os grandes mestres Otto Maria Carpeaux, Paulo de Castro, Newton Carlos, entre outros de igual calibre. Hoje, o que nos resta é um sujeitinho da Globonews, que reside em Nova York, que nos informou que o melhor livro que leu na vida foi “A Indonésia ao seu alcance”. Um livrinho distribuído pela embaixada indonésia.
Não convivo mais com pessoas que, não tendo capacidade de buscar explicações para o mundo e o Brasil atuais, preferem repetir a cantilena pseudomarxista dos anos 1960. Convivi muito com gente dessa espécie. Certa vez, escrevi que, embora eu não tenha votado em Bolsonaro, considerava que, eleito, era teria que cumprir o seu mandato até o fim - e levar adiante o seu programa. O Brasil não ficaria pior nem melhor que antes, a não ser no quesito roubalheira, cuja patente, parece, é do PT e seus aliados. Disse também que o medo da esquerda era que o governo Bolsonaro desse certo. Foi o bastante para receber uma mensagem de um sujeito que prezo, outro comunistão que, ainda hoje, acredita que o socialismo está vivo e que Stalin é o tal, lamentando minha opção política. Não respondi – em respeito ao princípio de que não falo com gente, mesmo amigo, que não entende o que digo e vive de costas para o mundo.
Aos 77 anos, que mais posso fazer? Minha vida, hoje, resume-se a escrever, ler, ouvir música e assistir filmes, embora eu considere cinema uma arte menor. Essa expressão – arte menor – eu a utilizei durante um debate na UnB, e provocou todos os tipos de reação, boas e más. Não usei a expressão de forma gratuita, mas ao comparar cinema e teatro, este sim uma grande arte. Como já disse inúmeras vezes, gosto mais de teatro do que de cinema. Mas isto é outra história.