domingo, 24 de janeiro de 2016

Ideologia da trambicagem


Trambiques

É preciso admitir. O brasileiro sofre de vocação do trambique, que é a tradução perfeita dos siameses jeitinho e corrupção.

Não me refiro apenas aos corruptos que enxameiam os poderes executivo, legislativo e judiciário. Falo dos pequenos e permanentes trambiqueiros: falo daqueles que furam fila, desrespeitando os que ordeiramente esperam sua vez; falo daqueles que estacionam seus carros nas vagas dos idosos ou dos deficientes físicos; daqueles que avançam o sinal e não respeitam as faixas de pedestres. Falo daqueles que ultrapassam os limites de velocidade, trafegam pelo acostamento e ultrapassam pela direita. Falo daqueles que condenam a corrupção, falam em cidadania, em decência, em caráter, mas que, no fundo, gostariam de pertencer à turma dos trambiqueiros. Falo também dos brasileiros que votam nos políticos envolvidos em processos de improbidade, peculato ou falta de decoro. Falo, enfim, de todos que trambicam - e disso fizeram o seu modo de ser. 

Não, não me refiro aos notórios corruptos. Nem da justiça que não os trancafiam no xilindró. Falo daqueles que apoiaram o AI-5, sabiam que havia tortura e morte nos porões da repressão, e hoje fazem cara de paisagem quando se discute se a tortura é passível ou não de anistia. Falo de ex-ministros da ditadura que não se envergonham de falar, em tom de crítica, do “regime autoritário”, confiantes de que o Brasil e os brasileiros não têm memória. Falo das pessoas que usam o celular enquanto dirigem. Falo daqueles que cospem no chão. Falo de todos que são incapazes de um gesto de ternura.

Falo de todos que repetem clichês, como direitos humanos, desenvolvimento sustentável, igualdade, democracia, paz, transparência, mas agem na contramão de tudo que apregoam. Falo daqueles que mantêm os arquivos da ditadura inacessíveis a todos nós. Falo dos professores que não se autorrespeitam e dos estudantes que compram diplomas, agridem professores e se orgulham de nunca ter lido um livro sequer na vida.

Não, não falo apenas daqueles que fazem jogadas no mercado financeiro. Falo dos magistrados que negam habeas corpus a uma mulher que pixou paredes do Museu de Arte Moderna de São Paulo, mas são rápidos em ordenar a libertação de corruptos e criminosos. Falo dos brasileiros que poluem as praias, provocam incêndios criminosos, são traficantes de animais silvestres, de mulheres, de crianças, de órgãos humanos, de armas e drogas. Falo contra as autoridades brasileiras que estimulam o não saber, a incultura e a ignorância. Falo das autoridades que reduzem os impostos dos automóveis, mas não fazem nada semelhante em relação aos livros e às artes em geral.

O trambique é a fraude das fraudes. O trambique age sorrateiramente, faz parte da cultura brasileira, soma-se à ideologia do “primeiro eu”, do “tirar vantagem em tudo”, da “farinha pouca meu pirão primeiro”, do “depois de mim, o dilúvio”, do “sabe com quem está falando”, do “meu cargo me dá esse direito”, do “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. O trambique impregna e mutila o caráter nacional brasileira, age como uma lagarta que rói as folhas das plantas.

Falo, enfim, das elites brasileiras, que deram as costas ao povo brasileiro. Que enxergam no povo uma espécie de carvão, a ser queimado e gasto na produção. Falo das autoridades que dão maus exemplos. Falo dos donos do poder e do poder dos donos. Falo dos embusteiros. Falo daqueles que riem alegremente quando o presidente utiliza palavras chulas e expressões vulgares em meio a discursos que deveriam ser sérios. Falo dos comentaristas políticos de meia tigela, que bajulam o poder. Falo dos analistas econômicos que, em razão da crise, querem o fim das leis trabalhistas, mas nada falam sobre os lucros exorbitantes dos bancos, das grandes empresas e das remessas ilícitas de lucros para o exterior.

Falo dos arrastões, dos políticos que se dizem preocupados com o desemprego, mas recebem verbas ordinárias e extraordinárias – sem a necessidade, comum aos mortais, de prestar contas e devolver o excedente. Falo dos brasileiros que estão conformados com o que fomos, somos e seremos – o país do futuro, do carnaval, do futebol, da cervejinha gelada, do cafezinho requentado, do pão de queijo borrachudo.

Falo, enfim, dos brasileiros que aceitam com resignação a mais vergonhosa das nossas heranças históricas: a consciência da trambicagem.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

A carta aberta dos advogados


O Brasil é um país carente de pudor.

A carta aberta de advogados contra a Operação Lava Jato é digna de estudos e reflexões pelo que ela tem insensata.

Acostumados a cobrar milhões para defender gatunos que roubaram bilhões, advogados denunciaram o que eles rotularam de métodos autoritários do Lava Jato. Métodos, segundo eles, nunca vistos no Brasil, nem mesmo durante a ditadura. É moda, hoje, desqualificar alguma coisa comparando-a com o que era corriqueiro na ditadura.

Os argumentos dos advogados coincidem, em parte, com o que disse o PT, partido que traiu as suas origens, transformando-se num partido cuja ética pode ser medida pelos cifrões que recebe por baixo dos panos. Coincidência?

Quando o Mensalão prendeu diversas lideranças políticas, o autoritário da época, segundo o PT, era o juiz Joaquim Barbosa. Bem, o caso do Joaquim Barbosa tinha outro componente embutido: o racismo à brasileira, insidioso, mascarado, negado, sutil, mas sempre evidente e praticado.

Na época, recebi uma mensagem de um jornalista aqui de Brasília que, no mesmo texto, escreveu três vezes que Joaquim fora o “primeiro negro” a ser indicado para o STF – e insinuava que ele deveria ser agradecido ao Lula, que o indicou. A indicação de Barbosa seria uma espécie de dádiva concedida pelo Brahma. Ora, se Lula indicou Barbosa por ser ele um afrodescendente, independentemente da sua qualificação, o presidente da República foi racista, demagogo e errou na sua função de presidente.

Não respondi a mensagem, mas o jornalista cometeu, num só parágrafo, um erro histórico e um crime.

O erro histórico foi o de afirmar que Joaquim Barbosa foi o primeiro afrodescendente a vestir a toga do STF. Besteira. Antes dele, dois outros afrodescendentes pertenceram ao Supremo: Pedro Lessa (1907-1921) e Hermenegildo de Barros (1919-1937). O jornalista não cometeria tal erro se tivesse consultado a bem documentada “Enciclopédia brasileira da diáspora africana”, de Nei Lopes.

O crime foi bem mais sério. Certa ocasião, Abdias do Nascimento, um ícone do movimento negro brasileiro, me disse que toda vez que alguém cita a cor da pele de um sujeito como referência (para o bem ou para o mal), na realidade está fazendo uma referência racista. Lula, por exemplo, indicou Ricardo Lewandovski para o STF. Por que o jornalista não fez uma referência do tipo “ministro branco e louro indicado por Lula”? O jornalista, que, por sinal, é branco, lamentou que Barbosa não foi agradecido ao PT – e, no melhor estilo racista, sugeriu que o afrodescendente ministro “sujou na saída”. Ou, o que é pior, não beijou a mão do “sinhozinho Lula”.

A verdade é a seguinte: no Brasil, poucos aceitam que um ministro afrodescendente acuse, condene e prenda políticos brancos e louros. Joaquim Barbosa foi demonizado porque era afrodescendente – e muitos militantes petistas, jornalistas e intelectuais têm, dentro deles, um viés racista do qual eles nunca se libertaram, mas procuram disfarçar com belos discursos. Daí, a guerra contra o ministro Joaquim Barbosa.

Agora, as baterias se voltam contra a Operação Lava Jato, acusando-a de ser um tribunal autoritário. Na realidade, os signatários da carta aberta - donos, sócios ou associados de bancas que se tornaram poderosas defendendo notórios larápios do dinheiro público -, sabem que a fonte dos seus milionários ganhos está sendo desnudada, posta a nu pela Lava Jato. Compreende-se, assim, a carta aberta dos advogados.

A verdade dói. Os advogados ficaram ricos e poderosos porque receberam raspas do dinheirão que empresários e políticos inescrupulosos roubaram ou sonegaram. Se um empresário estarra 300 milhões e paga 30 milhões a uma banca para defendê-lo, temos aí uma relação, no mínimo, incestuosa.

Os empresários não merecem defesa. Merecem. Nós é que não merecemos ser premiados com uma carta aberta contra uma Operação que pretende enfrentar a corrupção no Brasil.

O Brasil é um país com déficit de pudor e caráter. É a conclusão que cheguei ao ler a carta aberta dos sábios.