domingo, 14 de agosto de 2011

Olá, amigos!

O blog

Inauguro, hoje, o meu blog.
Por ele vou me expressar, mandar minhas brasas e levar adiante a minha campanha "Contra o Brasil que jamais desejei".
Quem me conhece sabe que sempre fui um iracundo. Fiz o que pude para tornar o Brasil um país de todos os brasileiros: lutei contra a ditadura, engajei-me na formação de um partido político, o PDT, fui secretário de ciência e tecnologia do governador Cristovam Buarque, escrevi, palestrei, dei aulas, escrevi 14 livros e centenas de artigos. Fiz o que pude. Aprendi muito.
Não fui o único, claro, mas um entre milhares. Pena. Nada deu certo, a não ser para os grupos e forças políticas contra as quais lutei. Mas não me lamento. Hoje, não me levo tanto a sério, mas, confesso, tenho orgulho do que fui e sou. Minha vida, hoje, é ler, ouvir música, espiar a vida e sobreviver. Minha única e última trincheira é o meu pobre computador. Daí o meu blog, daí meus livros e artigos.
Meus grandes ícones já se foram: Brizola, Darci, Carpeaux, Callado, Franklin de Oliveira, Fausto Wolff, Érico Veríssimo, Jorge Amado, Edmundo Muniz, Florestan, Caio Prado Júnior. Citei alguns, há outros. Vivos, temos entre outros o grande Antonio Cândido. 

Papo de Amigos

Explico, agora, o título do blog.
Os compositores Luis Reis e Haroldo Barbosa escreveram uma canção chamada "Tudo é magnífico", que foi gravada pela grande Elisete Cardoso. Um dos versos da canção diz: "Magnífico é o papo da tarde/na mesa de amigos/num bar". Daí extraí o "Papo de Amigos". Vamos conversar, meus amigos, trocar ideias.

Divulgação

Divulguem o blog Papo de Amigos! 

Artigo

Escrevi, um dia, o artigo abaixo. Em face das mensagens que recebi, inauguro com ele o Papo de Amigos.

Crimes hediondos
Dois livros me falaram à cabeça e ao coração. Crime e Castigo, de Dostoievski, que li aos dezenove anos, ensinou-me uma lição inesquecível e, ao mesmo tempo, dolorosa: o homem (o homo sapiens, isto é, o homem sábio) é capaz de racionalizar tudo o que faz, até mesmo um crime bárbaro. A racionalização que Raskolnikov faz para assassinar Aliova Ivanovna, uma mulher velha, feia e avarenta (logo, a seu ver, uma pessoa execrável) é um dos textos mais sufocantes da literatura mundial. O texto põe em evidência o túnel insondável da alma humana, o pântano (a expressão, se não me engano, é de Nelson Rodrigues) que o homem carrega dentro de si, onde vive, por assim dizer, a herança inassimilada do nosso passado animal que, tantas vezes, diante de situações extremas, comanda o nosso comportamento e as nossas ações.
Raskolnikov não se justifica, racionaliza. Nem está diante de uma situação extrema, como um acesso de fúria. Ele dá liberdade à sua herança animal, como um ato lógico, consciente, normal. Raskolnikov é um estudante pobre, mora numa casa de cômodos imunda em São Petersburgo. Às vezes sequer tem dinheiro para comer. Vive quase sem esperança. Tortura-se ao pensar na miséria de sua mãe, que vive na província. É um infeliz. Não tem futuro.
Ao planejar e executar o crime, ele se situa (ou sente-se como tal) acima das normas e dos padrões de moralidade que aprendemos há séculos – valores que, teoricamente, nos ensinaram a diferença entre a barbárie e a civilização, e estabeleceram regras da vida em coletividade. Raskolnikov torna-se o juiz dos seus próprios atos. Como tal, sente-se previamente absolvido do crime, até porque a mulher que ele decidiu eliminar – para roubar - era apenas uma “pessoa que não era uma pessoa, mas um piolho, inútil, nojento, nocivo”.
O crime ocorre nas primeiras páginas do livro[1]. A ação, em si, é puro Freddy Kruger: Raskolnikov encurrala a velha prestamista, que tenta escapar, e a mata a golpes de machado. Dostoievski é enxuto ao descrevê-la, o que não a exime de provocar horror: Então ele bateu duas vezes com toda a força, sempre com as costas do machado e nas têmporas. O sangue jorrou, como de um copo derrubado, e o corpo caiu de costas. Ele recuou, deixou-a cair e no mesmo instante abaixou-se para lhe olhar o rosto; estava morta. Tinha os olhos esbugalhados, como se quisessem saltar e a testa e todo o rosto franzidos e deformados pela convulsão. Apesar da secura do texto, ninguém o lê indiferente.
Raskolnikov, na verdade, não vacilou nem sentiu o menor remorso ao praticar o assassinato da velha “execrável”. Contudo, ocupado em procurar o dinheiro da velha, um fato inesperado o obrigou a cometer um segundo assassinato. A vítima da vez será a irmã de Aliova, Lisavieta, que, inesperadamente, entrara pela porta deixada aberta – e presenciou, paralisada, o crime. Se o primeiro assassinato foi planejado, o segundo foi obra exclusiva do acaso, uma infeliz coincidência, um desdobramento do primeiro, que virá a provocar fissuras na fria racionalização de Raskolnikov. O imprevisto da entrada em cena de Lisavieta abala a segurança de Raskolnikov.
O final da história não podia ser outro. Uma irremediável e profunda solidão atormenta Raskolnikov, que não consegue esquecer o que fez: sente medo, não remorso, mas aos poucos vai perdendo o domínio sobre os nervos. Desmorona aos poucos. Despedaça-se. Sente-se, a cada dia, nos limites da sua resistência. Sonya, uma prostituta, torna-se a única pessoa a lhe proporcionar um mínimo de paz e tranqüilidade. E é a ela que Raskolnikov confessa o crime que cometera, em meio a um diálogo longo, sofrido e tenso. Raskolnikov não é preso, embora o inspetor Porfiri Petrovitch, com quem conversara por três vezes, saiba (ou presuma) a verdade.  Esbodegado pelas emoções e pressionado por Sonya, Raskolnikov apresenta-se voluntariamente à polícia, atitude que Petrovitch esperava que ele, cedo ou tarde, tomasse. Raskolnikov será condenado a trabalhos forçados. Compadecida, Sonya o acompanhará no caminho para a Sibéria.
Os Sertões, de Euclides da Cunha, em alguns pontos se aproxima de Crime e Castigo. Tal como na obra-prima de Dostoievski, o livro de Euclides da Cunha conta a história (nesse caso, real) de um crime horroroso. Não de um crime individual, mas de um crime coletivo racionalmente planejado, que, em face da resistência heróica dos sertanejos de Canudos, saiu do controle das forças militares, que, de início, admitiam liquidar os sertanejos num piscar de olhos. Se a chegada inesperada de Lisavieta obrigou Raskolnikov a cometer um segundo assassinato, a surpreendente resistência da gente de Canudos exigiu das tropas federais a prática de mais e mais crimes, em graus cada vez mais elevados de crueldade. A escalada foi terrível: a primeira expedição contra Canudos foi comandada por um tenente; a segunda expedição por um major; a terceira expedição por dois coronéis; a quarta expedição por três generais e numerosos coronéis, majores, capitães e tenentes. A primeira expedição compunha-se de cem soldados; a segunda de seiscentos; a terceira de mil e duzentos; a quarta de quatro mil e quinhentos, que, depois, foi reforçada com o dobro dos soldados, sob o comando de um quarto general.
Os Sertões é a história da destruição de Canudos, onde, supostamente, sertanejos ignorantes e pobres, liderados por Antonio Conselheiro, conspiravam contra a República com o objetivo de restaurar a Monarquia. Durante certo tempo, o próprio Euclides da Cunha acreditou nessa história da carochinha, mas, ao chegar ao local, na condição de correspondente de O Estado de S. Paulo, logo percebeu que Canudos incomodava as oligarquias locais e, por isso, precisava ser massacrada[2]. O trecho final da obra é tocante: Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História, resistiu até ao esgotamento completo, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados.
Em Canudos, havia 5.200 casas, onde moravam mais de trinta mil pessoas - Canudos era a segunda cidade da Bahia, abaixo apenas de Salvador, que tinha, na época, menos de 200 mil habitantes. Todos moradores de Canudos foram mortos em combate ou executados depois de presos[3]. Escreveu Euclides: Aquela campanha foi, na significação integral da palavra, um crime. Denunciemo-lo. A frase é perfeita – como estilo e propósito.
Crime e Castigo e Os Sertões têm em comum, cabe repetir, o fato de que tanto o assassinato da velha agiota como o massacre dos sertanejos foram atos planejados e racionalizados: o primeiro, por um estudante pobre e revoltado; o segundo pelo poder dominante. Raskolnikov matou Aliova Ivanovna porque ela era velha, feia, desprezível, avarenta, nociva e cruel (os adjetivos foram usados por Dostoievski) para com os seus devedores: como tal, devia morrer. Ao matá-la, Raskolnikov estava praticando, segundo seu entendimento, um ato de justiça, não só porque as vítimas da prestamista ficariam livres das suas dívidas e das constantes humilhações, como ele próprio, Raskolnikov, garantiria a si os meios indispensáveis para ter uma vida minimamente digna, que ele julgava merecer. No fundo, Raskolnikov, não por razões ideológicas ou políticas, mas por motivos filosóficos, assumiu o papel de juiz, condenou a usurária à morte - e a executou. Tudo muito frio, tudo muito lógico, tudo muito racional. No fundo, tal como as razões que impuseram a destruição de Canudos. O exército esmagou o vilarejo sertanejo porque ele contrariava a ordem política do sertão e dos donos do poder. Portanto, devia desaparecer.
Euclides da Cunha redigiu Os Sertões – um grande épico, em prosa - com o objetivo de denunciar o crime cometido contra Canudos e sua gente pelas autoridades constituídas da época. Longe de ser o foco de uma conspiração monárquica, Canudos foi, sem dúvida, o maior movimento de massas acontecido nos sertões nordestinos. Antonio Conselheiro, ao contrário do que afirmam os historiadores conservadores, não era um fanático, mas um líder popular obstinado, dotado de grande sabedoria intuitiva, que o levava a ser contra a modernidade positivista da República recém instalada. Não liderava nenhum movimento em favor da monarquia. Sua comunidade, bem como os princípios igualitários que a norteavam, constituía um exemplo inaceitável para as oligarquias rurais, que temiam que outras comunidades como Canudos brotassem na região, pondo em risco a ordem senhorial dos grandes latifundiários. Era necessário destruí-la, ou seja, cortar esse mal pela raiz. Os Sertões é a grande obra da historiografia brasileira escrita em defesa dos derrotados sem voz.




[1] . Dostoievski, Fiódor. Crime e Castigo (São Paulo, Ed. 34, 2001). O assassinato de Aliova Ivanovna ocorre na página 91 da edição citada. O livro tem 561 páginas.
[2] . Em 14 de março de 1897, Euclides publicou um artigo no O Estado de S. Paulo sobre Canudos, no qual comparou o conflito na Bahia à rebelião dos camponeses monarquistas e católicos da região de Vendéia, ocorrida na França de 1793 a 1795.
[3] . Na guerra de Canudos não se fez prisioneiros. Três livros de 1899 acusaram o Exército brasileiro de degola de prisioneiros: Descrição de uma viagem a Canudos, de Alvim Martins Horcades, um estudante de medicina que participara da guerra como voluntário; Libelo Republicado, do deputado baiano César Zama (assinou Wolsey); O Rei dos Jagunços, de Manuel Benício (correspondente do Jornal do Commercio).





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