domingo, 23 de outubro de 2011

Érico Veríssimo, leitura obrigatória

Chuva e frio em Brasília. O velho professor do Penedo aproveitou o fim de semana para folhear e reler trechos de um livro que marcou a sua juventude: O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo. Como era dia de atualizar o blog, escreveu o artigo abaixo. Espero que ele estimule os leitores a ler a obra de Érico Veríssimo. Fernando Sabino e Davi Neves foram os autores do vídeo que ilustra a matéria.


Érico Veríssimo e O Tempo e o Vento

Sobre Érico Veríssimo, há uma quase unanimidade: O Tempo e o Vento é o seu mais importante livro, uma verdadeira obra-prima. Concordo plenamente, mas o "quase" se explica, pois há gente que aponta outros romances - e os mais citados são: O Resto é Silêncio, Incidente em Antares e O Senhor Embaixador - como os livros de ponta do escritor gaúcho.
Num aspecto, porém, todos os leitores de Érico Veríssimo coincidem. O Tempo e o Vento foi o projeto literário mais ousado do escritor, certamente um dos mais ousados projetos da literatura brasileira. De todos os seus livros, foi, com certeza, o que mais exigiu em esforço, técnica e imaginação, a julgar pela galeria de personagens e situações que passam pelas suas 2.300 páginas. O filho dele, o escritor Luis Fernando Veríssimo, fez um comentário curto e definitivo sobre a dimensão física e literária do livro: "Em O Tempo e o Vento não se sabe o que é mais espantoso, a ambição do autor ou o fato de que conseguiu realizá-la".
A obra crítica sobre Érico Veríssimo - e, em especial, sobre O Tempo e o Vento - é relativamente escassa, ou, pelo menos, não está à altura do sucesso que ele obteve junto ao público. Otto Maria Carpeaux lamentou, certa vez, que sobre Érico Veríssimo quase só existissem notícias críticas, além dos curtos ensaios de Afonso Arinos de Melo Franco, Moysés Vellinho, Antonio Candido, entre outros. Carpeaux acrescentou, ainda, que não existia um estudo completo sobre a obra em conjunto de Érico Veríssimo. Bem verdade que há os estudos recentes de Flávio Loureiro Chaves, Daniel Fresnot, Maria da Glória Bornini e Joaquim Rodrigues Suro e a belíssima coletânea de ensaios sobre O Tempo e o Vento, editada pelas universidades de Santa Maria e Sagrado Coração. Pena que a sua distribuição deixe a desejar: eu, por exemplo, comprei o meu exemplar em Porto Alegre; procurei o livro nas principais livrarias do Rio de Janeiro e em Brasília. Não encontrei.
Não pretendo escrever sobre o conjunto de romances de Érico Veríssimo. Minha pretensão é mais modesta: quero destacar apenas alguns poucos aspectos da obra do escritor gaúcho.
Antes disso, porém, vale recordar que O Tempo e o Vento compõe-se de três volumes: O Continente (1949), O Retrato (1951) e O Arquipélago (1962). A história tem início numa missão jesuítica, em 1745, e termina quando o Estado Novo vive a sua agonia, em 1945. Trata-se, em resumo, da história das famílias Terra e Cambará, desde a origem de ambas no Continente de São Pedro até a conquista da hegemonia política na cidade de Santa Fé. O Tempo e o Vento é, em síntese, a história das lutas políticas do Rio Grande do Sul e da trajetória de vida das famílias Terra e Cambará, tendo como palco a cidade de Santa Fé.
O que impressiona na obra de Érico Veríssimo é justamente isso: a extrema capacidade do escritor gaúcho de estabelecer nexos lógicos entre a história ficcional e a história real, do Rio Grande e, por consequência, do Brasil, sem forçar a barra num sentido ou noutro. A história sulina e brasileira constitui, sem dúvida, o pano de fundo de O Tempo e o Vento, mas em momento algum o romance perdeu o caráter de obra literária para se transformar num indesejável documento histórico ou sociológico. O segredo disso talvez esteja na experiência do autor e, em paralelo, no domínio das técnicas da narrativa, das quais Érico Veríssimo sempre foi um mestre, desde Caminhos Cruzados a Incidente em Antares.
Jorge Amado, cuja obra era mais força e imaginação que técnica, tentou fazer, nos três volumes de Os Subterrâneos da Liberdade, um painel político do Estado Novo. Seus personagens, porém, transformaram-se em clichês da luta entre o bem e o mal. Os personagens de Érico Veríssimo, ao contrário, são de carne, osso e espírito - ou seja, vivem as dúvidas, as riquezas e as contradições próprias da natureza humana. Numa palavra: há uma inexorável distância entre a militante Mariana (personagem de Jorge Amado) e a matriarca Ana Terra (personagem de Érico Veríssimo).
Otto Maria Carpeaux notou que a ficção é, em última instância, a organização verbal de uma coleção de personagens e de seus destinos. Érico Veríssimo, contudo, foi mais fundo: construiu não só uma obra de ficção como soube narrar os acontecimentos criados como se eles fossem reais, unindo o inventado ao acontecido a fim de construir uma realidade plausível - a realidade de O Tempo e o Vento. Assim, o inventado e o acontecido tornaram-se, na obra de Érico Veríssimo, um só enredo, uma só unidade, obedecidas as regras da obra literária. Em resumo: O Tempo e o Vento é a história do Rio Grande do Sul sob a forma e nos limites da ficção. É um grande livro. É um clássico da literatura.
A rigor, o escritor gaúcho demonstrou uma enorme capacidade de criar e manejar personagens, o que é notável em vista do grande número de personagens principais, secundários ou circunstanciais de O Tempo e o Vento. Paulo Rónai notou que, em O Tempo e o Vento, Érico Veríssimo soube superar uma dificuldade de monta na construção de personagens dentro da mesma família: o da transmissão dos caracteres familiares. É preciso não só intuição como sensibilidade e tato para não se cair no esquematismo na aplicação das leis da hereditariedade. Érico Veríssimo soube dosar o substrato psicológico dos Terra (casmurrice, teimosia, desconfiança) ao temperamento folgazão, temerário e meio irresponsável dos Cambará. Os personagens que surgiram da união das duas famílias são seres matizados pelas características dos seus ascendentes, mas apresentam traços individuais muito próprios e fortes. Não são cópias nem transladações.
Érico Veríssimo foi, sem dúvida, um dos grandes mestres da literatura brasileira. Um exemplo raro de escritor que transitou da periferia para o centro e, daí, para o universal, conservando, porém, as características de origem. E, assim, sem perceber, cometeu também dois "pecados", segundo os códices do campo intelectual brasileiro. O pecado do sucesso junto ao público (no Brasil, escritor que vende é, em geral, mal visto pela crítica pernóstica); e o pecado de ter vivido sempre na província, distante dos grandes centros literários, como o Rio de Janeiro e São Paulo. A "panelinha" é uma instituição nacional.
Resta acreditar que, enquanto houver leitores de livros, a obra de Érico Veríssimo permanecerá - e livros como O Tempo e o Vento ainda despertarão emoção e prazer. Trata-se de uma esperança? Talvez. Afinal, não nos resta muito mais que isso.

Em tempo: O velho professor do Penedo sugere ainda a leitura de outros livros de Érico Veríssimo: Caminhos Cruzados; Noite; O Resto é Silêncio; Senhor Embaixador e Incidente em Antares.
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