segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

A internacionalização da Amazônia

"São povos que possuem todos os elementos para serem prósperos, adiantados e felizes, e que, no entanto, arrastam uma vida penosa e difícil: por quê?"

Manoel Bomfim

As palavras de Manoel Bomfim, escritas em 1905, continuam ainda hoje a pesar na nossa consciência, sem resposta. Afinal, porque o povo brasileiro continua a amargar uma vida difícil e penosa apesar de possuir tantas e tamanhas condições de ser feliz e próspero? Que insondável atavismo é esse, que nos condena sempre ao atraso, à ignorância, à dependência e à falta de esperança. Como explicar o atoleiro histórico de um país com tantas possibilidades e riquezas como o Brasil?

A Amazônia é um território de imenso potencial e notável soma de recursos naturais, além de possuir a mais extraordinária - em extensão, volume e beleza - bacia hidrográfica do planeta. Este é, sem dúvida, o seu esplendor, mas é, também, a sua miséria, pois a presença de tantas riquezas - madeireiras, minerais, biológicas e aquíferas - estimula a convergência sobre a Amazônia de interesses poderosíssimos, os quais dificilmente podem ser detidos ou controlados. "Para que a afirmação da verdade alcance seu pleno efeito", dizia Shaw, "é preciso dizê-la diretamente, brutalmente". Pois bem: a Amazônia corre, hoje em dia, grande perigo, agravado em muito pela omissão e leniência do atual governo.

Existe, afinal, uma ameaça efetiva de internacionalização da Amazônia?

Não só existe como as ameaças e as investidas, a julgar pelas evidências, irão aumentar nos próximos anos. Sob as copas das árvores daquele impressionante domínio florestal, nos igarapés, nos igapós, nos estuários, na biodiversidade, no solo, no subsolo, nas águas -, enfim, no cenário magnífico da Amazônia, "dormem" trilhões de dólares.

E esses trilhões são sonantes demais para não serem ouvidos pelo império, para usarmos uma expressão de Antonio Negri e Michael Hardt. "Nas últimas décadas", disseram os dois autores, "vimos testemunhando uma globalização irresistível e irreversível de trocas econômicas e culturais. Juntamente com o mercado global e com circuitos globais de produção, surgiu uma ordem global, uma nova lógica e estrutura de comando - em resumo, uma nova forma de supremacia". E concluíram: "O império é a substância política que, de fato, regula essas permutas globais, o poder supremo que governa o mundo".

Hoje, e todos (inclusive as autoridades) sabemos disso, são contrabandeados da Amazônia madeiras nobres, recursos genéticos, minérios - e gente, mulheres, crianças e adolescentes para a prostituição. (A revista IstoÉ, de 5 de junho de 2002, publicou impressionante matéria sobre o aliciamento de meninas da Amazônia para trabalhar em boates na América Latina e Europa, onde se prostituem, se viciam e, finalmente, morrem ou são descartadas).

Tudo isso, porém, por mais horror que nos cause, não é uma fatalidade histórica, da qual jamais nos livraremos. As vicissitudes e as dores amazônicas são históricas, ou seja, são o produto da nossa herança colonial, marcada pela submissão externa, e da ação nociva e deletéria das nossas classes dominantes, antigas e modernas, para quem o povo brasileiro é uma coisa reles e o Brasil, apenas uma mancha e um nome no mapa. A sociedade brasileira, como observou Darcy Ribeiro, é uma sociedade enferma de desigualdade, enferma de descaso por sua população e enferma de indiferença pelas coisas do país. É preciso ter a coragem de ver e dizer tudo isso, pois só assim, um dia, quem sabe, poderemos romper a nossa condenação ao atraso, à pobreza e à obediência servil ao império.

Repito: a Amazônia corre perigo. Sabemos que muitos defendem a ideia de que a Amazônia, tão espoliada e ferida, deveria ser submetida a uma jurisdição especial (uma espécie de soberania compartilhada), a cargo de organismos internacionais e de organizações não governamentais selecionadas, supervisionadas por nações ditas “reconhecidamente responsáveis”. É a tese, defendida por organismos internacionais, ONGs e multinacionais: a Amazônia como patrimônio da humanidade.

Os erros do passado não explicam nem justificam as omissões do presente ou a descrença no futuro. A verdade é que não dispomos de um projeto minimamente consistente para a Amazônia.

Mas, afinal, porque a Amazônia, tão rica e bela, carece de um projeto integrado, popular e sustentável de uso dos seus recursos? Marcel Bursztyn observou que "uma análise dos resultados de sucessivas políticas e iniciativas governamentais voltadas à Amazônia, ao longo das últimas décadas, revela que a intensificação da ação pública na região dá continuidade e amplifica o padrão histórico de desacertos magníficos. O desconhecimento, a falta de avaliação prévia, o descaso frente a possíveis resultados negativos da intervenção humana, são traços que se repetem em diferentes experiências malsucedidas". A Amazônia, apesar de possuir tantas riquezas, jamais esteve envolvida num projeto sério, contínuo e sustentável. Ironicamente, a Amazônia, de um lado, sempre foi tratada com descaso pelas autoridades governamentais e, de outro com profundo interesse pelo capital internacional.

Em suma, a Amazônia não tem um projeto - até porque o Brasil também não tem um projeto nacional, do qual o projeto da Amazônia poderia ser um desdobramento regional. É elementar. Não existindo um projeto nacional, o Brasil adotou, como seu, o projeto dos outros, o projeto que interessa aos centros dinâmicos da economia mundial. O Brasil, hoje, vive de ficções: faz de conta que estamos nos desenvolvendo, faz de conta que não há desemprego, que o povo está feliz, que há distribuição de renda, que somos, enfim, uma maravilha de país, maravilhosamente governado.

Estamos pagando por nossas fantasias - e, no futuro, quando a Amazônia for apenas um retrato na parede, vamos sentir, no corpo e na alma, o quanto custou a nossa cumplicidade e a nossa omissão.

Bem verdade que a Amazônia é um enorme desafio - econômico, político, científico e tecnológico. Sabemos que a região é riquíssima, mas não sabemos perfeitamente como explorá-la ou pô-la a serviço das necessidades brasileiras. No Brasil, hoje, discute-se tudo: o câncer do Lula, o Big Brother, o novo corte de cabelo do Neymar, a metafísica das novelas televisivas - mas não se debate uma região de mais de cinco milhões de quilômetros quadrados, extremamente rica em todos os sentidos. Por quê?

Quis, com o presente texto, provocar debate e reflexão. O Velho Professor do Penedo dedicou parte da minha vida ao esforço de melhorar o Brasil. Lutou em várias trincheiras – a última das quais é o laptop onde dedilho meus livros, artigos e brasas.

Ainda não fomos inteiramente derrotados, talvez tenhamos ainda a chance de recuperar o tempo perdido e salvar a Amazônia, que já nos acena um adeus. Não podemos ficar indiferentes e descuidados dos nossos problemas mais candentes.

A Amazônia é, na verdade, patrimônio do povo brasileiro.

Breves notas ao texto acima

Nota 1: Enquanto intelectuais do porte de Tavares Bastos defendiam a abertura do rio Amazonas ao comércio internacional, na pequena cidade de Juazeiro, Ceará, um homenzinho baixo e cabeçudo, cabelos brancos e crespos, sempre vestido de negro, protestava contra a venda de terras da Amazônia ao ricaço norte-americano Henry Ford. Mais: chegava mesmo a defender a luta armada do povo como forma de  defesa da soberania da Amazônia. Quem era esse homenzinho tão fervorosamente nacionalista? Era o padre Cícero Romão Batista, o "Padim Ciço", conforme o chamavam os crentes.

Nota 2: Em 1991, a Merck Pharmaceuticals, multinacional norte-americana, pagou 1 milhão de dólares pelo direito de manter e analisar amostras de plantas coletadas nos parques de floresta tropical úmida da Costa Rica. Esses direitos incondicionais de bioprospecção concedidos a uma multinacional (com receita de 4 bilhões de dólares anuais) em troca de míseros 1 milhão de dólares não respeitam os direitos das comunidades locais nem o governo da Costa Rica.

Nota 3: Anos atrás, o Jornal da Ciência informou que a Estação Científica Ferreira Penna, do Museu Paraense Emílio Goeldi, situada na Floresta Nacional de Caxiuanã, no município de Melgaço, no Pará, foi (notem o eufemismo!) selecionada para integrar o programa mundial de monitoramento da biodiversidade, chamado “Ecologia Tropical, Inventário e Monitoramento” (TEAM Initiative), coordenado pela Conservation International (CI), organização privada, sem fins lucrativos, dedicada à conservação e ao uso sustentado da biodiversidade. O TEAM Initiative vai integrar as pesquisas e as informações de bases instaladas em diversos pontos do globo, exigindo que em todas essas 50 bases sejam adotadas métodos científicos padronizados. Este fato, que, a rigor, afeta a nossa soberania, é um indicador claro daquela nova jurisdição política que pode estar sendo armada como sucedâneo à internacionalização da Amazônia.

Nota 4: Essa história de Amazônia, patrimônio da humanidade é uma espécie de senha, cujos fins são a dominação e a internacionalização de parte do território brasileiro. Alguém já ouviu falar em Sibéria, patrimônio da humanidade? Ou Califórnia, patrimônio da humanidade? Não? Pois é.

*****

Leituras etc.

O Velho Professor do Penedo leu, recentemente, três livros, que recomenda:

·        “O espetáculo mais triste da terra”, de Mauro Ventura. Trata-se de uma belíssima e comovente reportagem (na verdade, reconstituição) dos fatos e circunstâncias que cercaram o incêndio do Gran Circo Norte-Americano, em Niterói, em 1961. No incêndio, morreram mais de 500 pessoas.

·        “O enigma do capital e as crises do capitalismo”, de David Harvey, economista americano. Harvey explica a crise de 2008 e reforça a ideia de Karl Marx acertou ao prever as crises do capitalismo.

·        “O cemitério de Praga”, de Umberto Eco. Um romance tão sensacional quanto “O nome da rosa”, do mesmo autor.

*****

Cena (verdadeira) do cotidiano brasiliense

Cenário: uma rua qualquer de Brasília. O ardente sol de Brasília queimava o asfalto e as pedras da calçada. De repente, uma mulher com o filho no colo caminha despreocupadamente, indiferente ao choro do filho – à beira da desidratação – que trás no colo. Em sentido contrário, vem uma senhora. Segue-se, então, o seguinte e rápido diálogo:

Senhora – O menino está sofrendo no sol, mamãe.

Mamãe – Vá à merda!

O Velho Professor do Penedo jura que assistiu a cena.

Nenhum comentário:

Postar um comentário