O Velhote do Penedo reproduz artigo anterior, com correções e acréscimos necessários. Creio que os comentários anteriores ficaram mais claros. Agradeço a paciência dos meus leitores,
As manifestações populares
As manifestações populares que se espalharam –
e continuam a se espalhar - como um rastilho de pólvora pelo Brasil,
surpreenderam e, até certo ponto, assustaram governos, meios de comunicações,
políticos e partidos.
Afinal, todos eles supunham que o povo
sentia-se no melhor dos mundos: o futebol (Copa das Confederações e, ano que
vem, a Copa) estava aí mesmo para cumprir o seu papel entorpecedor, apesar dos
evidentes sinais de insatisfação que há meses se manifestavam aqui e ali. O
tsunami se aproximava – mas as elites brasileiras não estavam nem aí, tal a
certeza de que tudo podiam e que o povo é um mero sujeito que, de quatro em quatro anos, comparece às juntas
eleitorais para votar neles, ou seja, no tudo
igual como antes.
Vi um governador informar a uma população sem
educação digna, sem hospitais públicos decentes, sem transporte coletivo de
qualidade, uma população, enfim, sem segurança e sem perspectivas, o custo do
estádio de futebol no seu estado. Só faltou repetir o finado prefeito Mendes de
Moraes que, ao inaugurar em 1950 o Maracanã disse: “Eu vos dei este estádio!”
Pois o governador de hoje afirmou estar orgulhoso dos trabalhadores que
“ajudaram naquela empreitada”. A verdade é que o Brasil, até agora, já gastou
30 bilhões em estádios luxuosos, alguns dos quais, finda a Copa, se
transformarão em elefantes brancos. As elites estavam certas de que a beleza
dos estádios padrão Fifa faria o povo
relevar superfaturamentos, malandragens e corrupção.
Quando os primeiros manifestantes saíram à
rua, políticos e autoridades governamentais arrogantes limitaram-se a dar de
ombros, ao ponto de Alkmin e Haddad afirmarem que não voltariam atrás nos
aumentos das tarifas. O ministro da Fazenda declarou que o governo não tinha
como desonerar as tarifas de ônibus, tidas como a reivindicação única de um
movimento que se espalhava por todo o país, chegando, inclusive, a cidades de
20 e 30 mil habitantes. Mantega, Alkmin e Haddad esnobaram o pleito dos
manifestantes sem perceber que estavam – e estão – sentados num braseiro. Tenho
relativa experiência com os jovens universitários ou não – e sei que o jargão
deles nada tem a ver com o jargão dos políticos ou com a palavreado algo
idiotizado dos comentaristas dos meios de comunicação, mormente os da
televisão.
Fui, com minha neta e o namorado dela, às
passeatas de Brasília. Por curiosidade sociológica, prestei bastante atenção
nas “reivindicações” que os jovens expunham em toscos, mas criativos, cartazes
de cartolina - e eles não se limitavam a pedir a redução das tarifas. O aumento
das tarifas foi o pingo d'água que fez a insatisfação transbordar. O desprezo
pelos políticos, a certeza de que eles são safados e a convicção de que os
governantes são uma corja de bandidos que desprezam o povo – tudo isto eu ouvi,
durante anos, em sala de aula. Os cartazes que a garotada empunhava apenas
expressava o que eles (há anos) já diziam a quem se dispunha a ouvi-los.
Claro, havia “reivindicações” específicas,
inclusive contra a gastança em estádios superfaturados. Um cartaz dizia: “O
Brasil não precisa de estádios, precisa de educação e saúde”. Alguém duvida
disso? Pois as autoridades duvidam, dizem os jovens. Um cartaz em especial
chamou a minha atenção: “Os políticos são o câncer da nação”. Pode-se discutir
se o comentário é ou não correto do ponto de vista sociológico ou, mesmo, da
ciência política, se o comentário é de direita ou de esquerda, se é conservador
ou progressista. O importante, para mim, é que o comentário reflete um
sentimento enraizado. O desprezo e a descrença nos políticos, na política e nos
partidos são, a meu ver, o motor das manifestações.
O
custo absurdo, a suntuosidade dos estádios e o cinismo com que as autoridades
falavam de sua importância para o país, foi uma espécie de cusparada no rosto
de uma população sem educação, saúde, transportes coletivos, segurança e
esperança. Uma população que, diariamente, ouve falar das “tenebrosas
transações” envolvendo autoridades, políticos e empresários.
(Duas
observações complementares:
·
A presidente Dilma, ao inaugurar o Estádio Mané
Garrincha, em Brasília, afirmou que os “estádios que estavam sendo construídos
eram uma demonstração do poder criativo do povo brasileiro e que o Brasil fará
a mais bela e melhor Copa do Mundo de todos os tempos”. Os manifestantes
gostariam que ela falasse isso em relação a escolas e hospitais.
·
Ontem, 5 de julho de 2003, vimos o lamentável e
vergonhoso espetáculo de os Presidentes da Câmara (Henrique Alves) e do Senado
(Renan Calheiros) e um ministro de Estado (Garibaldi Alves) devolverem dinheiro
aos cofres públicos por uso indevido e imoral de avião da FAB em programas
pessoais. Garibaldi Alves usou um avião da FAB para sair do Nordeste e ir ao
Rio de Janeiro assistir a final da Copa das Confederações. Os políticos
brasileiros, com raras exceções, são inescrupulosos e vadios.)
Engana-se, porém, quem pensa que os
manifestantes formam uma massa homogênea do ponto de vista social – e que todos
estão preocupados com política ou com reivindicações específicas ou genéricas,
como democracia, reforma política, direitos humanos, valores republicanos. Os
manifestantes (digamos, a categoria
social total presente nas ruas da cidades brasileiras, unidos pelas) talvez
tenham em comum a faixa etária, o que é em parte verdade. Há de tudo nas
manifestações: jovens e coroas da pequena burguesia, jovens e coroas de classe
média baixa e alta, estudantes secundários e universitários, não estudantes,
trabalhadores e desempregados, aposentados, moradores de rua, punks, skinheads
e jovens ligados às organizações criminosas. Mas esta é, pelo menos, uma parte
significativa da sociedade brasileira – a sociedade que nós criamos ao longo de
513 anos de exploração, insensibilidade e covardia.
Os “vândalos”, palavra tão enraizada pelos
comentaristas da TV Globo e da GloboNews quando reportam as manifestações, não
são apenas estudantes e trabalhadores de classe média enfurecidos e
impacientes, como o estudante de arquitetura que ajudou a destruir um caixa
eletrônico. “Vândalos” são também, no extremo oposto, moradores de rua e jovens
marginais (bandoleiros ou ex-bandoleiros do narcotráfico) que, em última
análise, são as grandes vítimas de um histórico sistema social que, desde a
colonização, atende apenas aos filhos da classe média alta e das elites.
Jovens de classe média universitária protestam
expurgando políticos e governantes – ou, eventualmente, jogando pedras em
agências bancárias; os “vândalos do PCC”, como disse uma conhecida e equivocada
cronista do Correio Braziliense, que se misturaram às manifestações (eles
também têm do que protestar!), estão, por assim dizer, protestando à maneira deles – ou seja, pondo fogo, quebrando e
saqueando lojas, bancos e pontos de ônibus.
(Outra observação paralela:
·
Os chamados “vândalos do PCC” e os jovens que moram
nas ruas, abandonados e marginalizados pelo poder público, favelados
encurralados em ghetos que os políticos só vão visitar nas épocas eleitorais,
também podem protestar. Ou não podem? Será que a segregação social brasileiro
também atinge o direito de protestar? Será que só os bem nascidos podem
protestar e se manifestar?)
Afinal, que significado tem para os “vândalos
do PCC”, semianalfabetos e desempregados, que sabem que vão morrer cedo
fuzilados pela polícia, residentes em favelas e áreas degradadas (onde o Estado
jamais se fez presente) – que significado, repito, tem para esses jovens
marginalizados e largados à própria sorte expressões polidas como “bem
público”, “direito de ir e vir”, “democracia representativa”, “valores
republicanos”, “reivindicações legítimas”? Se para um “vândalo do PCC” tais
expressões não significam nada, por sua vez para o jovem universitário bem
nascido de classe média tais expressões não passam de “papo de político que
quer engabelar o povo”. As elites, os políticos e os comentaristas da TV Globo
e da GloboNews (principalmente) não sabem – ou fingem – não saber disso. Por
isso, dizem e repetem tantas sandices.
É bom não esquecer: na sexta feira, 21 de
junho, os “vândalos” que quebraram e roubaram revendedoras de automóveis na
Barra da Tijuca eram jovens marginalizados da Cidade de Deus, um dos “ghettos”
mais sórdidos do Rio de Janeiro, criado via a transferência violenta e
compulsória de favelados nos anos 1960. Sem escolas decentes, os jovens
marginalizados foram educados sob a lógico da violência. Muitos desses
“vândalos do PCC” têm passagem na polícia – por roubo, assalto e tráfico de
drogas, das quais, é bom lembrar, muitos das elites são usuários.
Os meios de
comunicação, especialmente TV Globo e a GloboNews, mostraram indignados quando
“bens públicos e privados foram
danificados pelos vândalos. E trataram de auxiliar a polícia na identificação
dos “desordeiros”. Muito bem. Em Ribeirão Preto, um motorista, raivoso com as
manifestações, jogou o carro com os estudantes: matou um, levou 5 ao hospital,
dois em estado grave; no Entorno do DF, outro motorista, nas mesmas
circunstâncias, matou duas jovens, uma das quais estava grávida. Prestei
atenção ao noticiário da Globo e da GloboNews: os dois motoristas não foram
chamados de “assassinos, o que eles são, nem seus nomes não foram divulgados. E
não só: estão soltos porque fugiram e não houve flagrantes.
A presidente Dilma, em rede nacional, afirmou
que apoia o clamor das ruas, desde que pacíficos e ordeiros. Afirmou que é
contra a corrupção; ora, estranho mesmo seria ela dizer que é a favor. Disse
que vai reunir-se com governadores, prefeitos e ministros para definir grandes
planos para a educação, saúde, transportes públicos – logo ela que estimou o
consumo de automóveis, nunca se importando com o povão que diariamente é
obrigado a viajar em ônibus imundos, que não cumprem horários, ônibus caindo
aos pedaços, que quebram e deixam os passageiros na rua, ao sol ou à chuva.
O PT está no poder há dez anos – e só agora,
quando o povo foi às ruas, o governo, pela voz da presidente, prometeu
enfrentar os problemas que todos sabíamos que existiam, inclusive os
governantes que, agora, estão assustados. O PT não priorizou a educação e
deixou a saúde pública de lado – estava convicto de que a bolsa família era uma
espécie de panacéia geral para todos os males da sociedade. Dilma – creio
piamente – não é corrupta, mas como disse Luis Fernando Veríssimo, o ímpeto
anticorrupção do início do seu governo não se sustentou. Os arranjos
governamentais – outra palavra mágica dos políticos: “governabilidade” –
cobraram muito de Dilma: ela está cercada de políticos espertalhões e ministros
incompetentes, que estão no cargo apenas para cobrir a famigerada “cota” da
“base de sustentação” (mais uma palavra mágica do vocabulário político).
Há quem acuse que as manifestações espontâneas
são perigosas porque se distanciam e substituem a política, podendo inclusive
ser manejadas. É possível. É certo que a demonização e a desmoralização da
política e dos políticos põe em risco a própria democracia. Mas quem demonizou
e desmoralizou a política senão os próprios políticos? Quando o governador
Sérgio Cabral usa - como se fosse seu - o helicóptero do governo do estado do
Rio de Janeiro, quando autoridades se deslocam em jatinhos da FAB, quando
governantes e deputados são flagrados recebendo propinas, quando governadores
se preocupam em construir estádios suntuosos e deixam de lado as necessidades
da população – quem está, de fato, demonizando e desmoralizando a política e,
no limite, demonizando e desmoralizando a política?
Dilma falou ainda em reforma política e em
lutar contra a corrupção – e, vejam só, convocou Eduardo Alves, Renan Calheiros
e José Sarney para debater temas tão candentes. Esqueceu de convocar o
companheiro Maluf e a turma do mensalão, que certamente teriam muito a dizer a
respeito do tema.
***
Em
tempo: ocorreu-me agora que os moradores da região serrana do Rio de Janeiro
estão, desde 2004, esperando as providências que “tia” Dilma prometeu no auge
das enchentes e das mais de 400 mortes dos últimos três anos. O povo não é
trouxa: sabe que “tia” Dilma esta manietada por interesses escusos e baixos, os
quais ela desprez, mas dos quais não tem ou não quer se libertar. Foi a chave
de cadeia que Lula (e cúmplices) armaram para ela.
Pior
para ela, que, enebriada pelo poder e pela arrogância de quem penas que é
professora, gerentona, supôs ser a estadista que o Brasil, há 500 anos,
esperava. Tal devaneio – melhor: tal delírio - vem custando caro ao povo
brasileiro.
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