quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Álvaro Vieira Pinto, um grande homem


Há uns três anos escrevi para o jornal O Globo o artigo abaixo sobre uma das pessoas mais notáveis que conheci: o professor Álvaro Vieira Pinto. Não, não convivi com ele, mas a ele fui apresentado por um amigo após uma palestra dele na Associação Brasileira de Imprensa, ABI. Isso foi em 1963. No ano seguinte, os milicos botaram os tanques na rua – e o Brasil submergiu, lentamente, na escuridão da ditadura.
Nunca mais vi Álvaro Vieira Pinto, que, ameaçado de prisão, exilou-se. Foi cassado, proibido de dar aulas, proibido de trabalhar. Homem de grande estatura moral, não se abateu. Quando voltou ao Brasil, além dos processos por subversão que teve que responder, sobreviveu escrevendo artigos, verbetes para enciclopédias, traduziu livrinhos pífios (sob pseudônimo). Recebia uma aposentadoria mínima. Levou uma vida de grandes restrições materiais, mas pôde escrever uma obra de grande valor intelectual, que, fôssemos um país sério, seria cultuada. Vieira Pinto faleceu no Rio de Janeiro, em 11 de junho de 1987.

Álvaro Vieira Pinto e o conceito de tecnologia
Há alguns anos, durante palestra numa conceituada universidade brasileira, Darcy Ribeiro afirmou que o veto ditatorial a determinados intelectuais, políticos e escritores funcionara admiravelmente. E deu o seguinte exemplo: alunos da casa faziam mestrado ou doutorado em filosofia sobre Heidegger, Kant e Hegel, entre outros sábios, mas nada sabiam sobre Álvaro Vieira Pinto, “o único filósofo ativo que havíamos produzido”. Na plateia, ao meu lado, um jovem professor virou-se para mim e perguntou, em voz baixa: “Mas, afinal, quem foi esse Álvaro Vieira Pinto?” Não se surpreendam, mas há professores universitários que não sabem quem foi e o que escreveu o autor de O conceito de tecnologia.
Comecemos pelo básico. Álvaro Vieira Pinto nasceu na cidade de Campos (RJ), em 1919. Tinha 68 anos quando morreu no Rio de Janeiro. Foi catedrático da Faculdade Nacional de Filosofia da então Universidade do Brasil (hoje UFRJ) e responsável pelo departamento de filosofia do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). O golpe militar de 1964 levou-o ao exílio e submeteu-o a vários processos: era, segundo os militares, um perigoso agente da subversão. As coisas eram assim, naqueles idos: um filósofo tornara-se um perigoso agente da subversão; militares armados, alguns dos quais iriam se destacar na prática da tortura contra presos políticos, eram cristãos e democratas.
Vieira Pinto era homem de vasta erudição e enorme modéstia. Referia-se a si mesmo como “filósofo pobre de um país subdesenvolvido”, embora fosse chamado de “meu mestre” por Paulo Freire. Era, na acepção da palavra, um sábio. Deixou uma obra da mais alta qualidade, que, com a publicação de O conceito de tecnologia, começa a ser resgatada. Falemos de três livros seus, em atenção à curiosidade do leitor – que, afinal, precisa saber “quem foi esse Álvaro Vieira Pinto”.
Consciência e realidade nacional, editado em 1960, é um dos textos clássicos de Vieira Pinto. Nele, discutiu a dramaticidade de ser brasileiro imerso nas difíceis opções da história. O debate proposto pelo autor girava em torno da relação recíproca entre consciência e o ser da nação, a partir da oposição entre consciência ingênua e consciência crítica, as quais expressavam visões antagônicas da realidade e dos rumos do desenvolvimento nacional. O debate é ainda atual.
A consciência ingênua apoia-se muitas vezes nos mitos e na sacralização dos fatos, perdendo-se, na expressão de Manoel Bomfim, no nevoeiro das aparências. “O Brasil é assim mesmo”, “o brasileiro não quer nada”, “o brasileiro é preguiçoso” – são algumas das verdades consagradas pela consciência ingênua, que elegeu Macunaíma, o herói sem caráter, e Jeca Tatu, o caipira fatalista e preguiçoso, como os arquétipos do homem brasileiro. “O brasileiro não tem jeito mesmo”, eis o pensamento síntese dos que temem qualquer tipo de mudança.
A consciência crítica, por outro lado, é inquietadora, na medida em que tem por exigência essencial a sua adequação às mudanças que ocorrem na sociedade. A consciência crítica pressupõe a valorização da consciência de nacionalidade voltada para um projeto de desenvolvimento próprio, ou seja, para um projeto nacional, contrário a quaisquer outros projetos impostos de fora para dentro ou que condene a nação a uma espécie de modernização conservadora - e, como tal, excludente e imobilizadora.
Obra-síntese do nacionalismo brasileiro em seu tempo, Consciência e realidade nacional é, ainda hoje, obra válida, na medida em que os impasses brasileiros – logo, os problemas ainda não resolvidos da nossa realidade – se localizam, como origem, no plano das opções de desenvolvimento que adotamos, ou fomos/somos forçados a adotar ao longo da nossa trajetória histórica.
Em Ciência e existência, escrito em 1967, durante o seu exílio no Chile, Vieira Pinto desenvolveu longa e erudita reflexão sobre os problemas filosóficos da pesquisa científica. “A ciência – disse ele – só pode tornar-se um instrumento de libertação do homem e do seu mundo nacional se for compreendida por uma teoria filosófica que a explique como atividade do ser humano pensante e revele o pleno significado da atitude de indagação em face da realidade natural e social”. Um país, como o Brasil, que necessita emancipar-se política e economicamente, precisa adquirir, segundo Vieira Pinto, capacidade de construir ideias e conhecimentos, a partir das quais possa compreender a si mesmo e explorar o mundo que lhe pertence, em benefício de si mesmo, ou seja, da sociedade brasileira. Com o lançamento, agora, de O conceito de tecnologia, os estudos de Vieira Pinto sobre o fenômeno científico ganham dimensão especial, projetando-se como um facho de inteligência sobre os debates corriqueiros onde atualmente se estiolam.
Em Por que os ricos não fazem greve? – livro que integrava o projeto “Cadernos do povo brasileiro”, da editora Civilização Brasileira, que Vieira Pinto dirigia juntamente com Enio Silveira – desenvolveu a tese de que os ricos não fazem greve porque os trabalhadores as fazem por eles. Numa sociedade como a nossa, observou Vieira Pinto, os eventuais ganhos dos trabalhadores grevistas são imediatamente repassados para a sociedade, sob diversas formas, inclusive a de reajustes de preços das mercadorias, de modo a recompor os ganhos do patronato. Isto, evidentemente, com o beneplácito dos governos. As greves, assim, se anulam e, no fundo, derrotam os próprios grevistas. Estamos falando de greve no regime capitalista.
O conceito de tecnologia reabre, em muitos aspectos, os debates propostos por Vieira Pinto nos seus livros anteriores, inclusive os não referidos neste artigo, como A questão da universidade e Ideologia e desenvolvimento nacional. Vieira Pinto não demoniza a tecnologia como não fecha os olhos para o avanço das técnicas, as quais, segundo o pensamento crítico, são potencialmente libertadoras, pois se integram no processo do desenvolvimento histórico universal da razão.
As técnicas são as formas da ação produtiva humana, racionalizada em virtude de obedecer ao conhecimento dos corpos e das forças naturais. Nesse sentido, elas são mediações, na medida em que o ser humano pensante é, através do seu trabalho, o verdadeiro autor do seu destino.
Vieira Pinto descarta o conceito de “era tecnológica” - ou, o que dá na mesma de “civilização tecnológica” - como definidor do mundo atual. Isso porque os apologistas da “era ou civilização tecnológica”, embasados no pensamento ingênuo, negam, com isso, a idéia de formação social como totalidade. A expressão “era ou civilização tecnológica”, aplicada aos tempos atuais, significa desconhecer ou negar o fato de que toda época possui a tecnologia que lhe é própria e de que a história é um processo contínuo de transformações. Cada momento histórico de qualquer formação social define-se, portanto, como uma era tecnológica específica, não cabendo, portanto, qualquer referência especial aos tempos atuais.
O deslumbramento tecnocrata pela “era tecnológica” resulta, antes de tudo, da falsa ideia de que a história é um produto da técnica. “A criação tecnológica de qualquer fase histórica”, observou Vieira Pinto, “influi sobre o comportamento dos homens, sem por isso, entretanto, haver o direito de considerá-la o motor da história. Apenas explica um estado de assombro e desnorteamento, e a correlata crise de valores, por motivo das profundas modificações nos hábitos sociais, nas formas de convivência e comunicação e nas respectivas maneiras de pensar”. Traço específico da consciência ingênua, a valorização da tecnologia é ideológica, no sentido em que busca glorificar a dominação dos chamados detentores das “tecnologias de ponta”.
Opondo-se aos críticos da tecnologia, entre os quais aqueles que a veem como “inimiga do homem, de causa do esmagamento dele”, Vieira Pinto nota que a vinculação da técnica com a figura de “terrível dragão postado à entrada do Paraíso”, tem principalmente por função impedir o aceso equitativo da maioria dos homens aos bens que produzem. “Opera como processo social seletivo”, concluiu. O mesmo se pode dizer sobre os indivíduos que defendem a renúncia à tecnologia, propondo um ingênuo “retorno” às origens, como se no passado ou no primitivo não existissem técnicas – e delas eles estivessem “livres”.
Vieira Pinto desenvolve, sobretudo no volume II de O conceito de tecnologia, ampla reflexão acerca da dicotomia entre as metrópoles e as nações subdesenvolvidas. “A mais corrente das teorias metropolitanas sobre as desigualdades de desenvolvimento tecnológico no campo das relações internacionais consiste em pretender que unicamente os povos adiantados têm condições para fazer progredir a ciência, porquanto o saber cresce em função do próprio crescimento”.
Tal concepção, muito em voga no meio tecno-científico, implica em considerar os cientistas e pesquisadores nativos eternos aprendizes. Bem verdade que a notável riqueza dos desenvolvidos lhes garante ponderáveis vantagens sobre os pobres. Contudo, os desenvolvidos não possuem o monopólio da inteligência e do talento. “Fazendo crer que a tecnologia fornece o instrumento da revolução pacífica do desenvolvimento, e ao mesmo tempo insinuando aos povos marginais a impossibilidade de engendrarem a técnica em quantidade e qualidade requeridas, os ideólogos do mundo alto convencem as populações atrasadas da prática inviabilidade de saírem por si mesmas da miserável condição onde vegetam”.
Este elixir de bruxas (a expressão é de Vieira Pinto) entorpece a consciência das nações pobres, abrindo espaço às variadas formas de “ajudas financeiras e técnicas”, que, ao contrário do que supõe o pensamento ingênuo, não leva ao desenvolvimento – e, sim, à dependência irremediável e à pobreza, como, aliás, provam as histórias dos países periféricos.
Enfim, O conceito de tecnologia é, sem dúvida, o mais consistente ensaio sobre algo que está presente no cotidiano humano: a tecnologia. São 1.328 páginas sobre o tema, embora o texto seja tão claro e límpido quanto a linha de raciocínio do autor.
O conceito de tecnologia é leitura indispensável a todos que pretendem compreender o esforço do homem pensante em dominar as condições de sua própria existência.
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Da série: “apenas para não esquecer” (I)
O governador Sérgio Cabral decretou luto pela morte do jornalista Rodolfo Fernandes. Merecido, sem dúvida. Agora, por que não fez o mesmo pela morte das cinco pessoas do bondinho de Santa Teresa? Aliás, o governador, até hoje, 31 de agosto de 2011, não fez qualquer declaração pública a respeito das mortes em Santa Teresa.
E por falar nisso...
O secretário de Transportes do Rio de Janeiro, Júlio Lopes, disse estranhar que o motorneiro, Nelson Correa da Silva, um dos cinco mortos no acidente, não tenha levado o bonde para oficina após pequena colisão antes da tragédia. Na entrevista, Júlio Lopes fez a insinuação maldosa: “Não queremos tirar e não tiraremos qualquer conclusão precipitada, qualquer ilação. Não se sabe por que motivo Nelson não levou o bonde para a oficina”.
É mole acusar um morto, que não pode se defender.
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Ricardo Gomes
Como vascaíno e sujeito que gosta de futebol, estou torcendo pelo restabelecimento do Ricardo Gomes, um cara digno, sério, responsável. Nós, vascaínos, esperamos que ele possa reassumir as suas funções em breve.


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Frases sobre o Brasil
Há anos coleciono frases sobre o Brasil. Tenho centenas delas – que tratam como gentes, aparências, situações, política. Tenho para mim que às vezes uma frase diz mais sobre o Brasil que um ensaio sociológico. Escolhi dez frases que traçam um retrato 3 X 4 deste país.
·         O Brasil é um país onde a esperteza passou a ser chamada de competência (Antonio Ermírio de Moraes).
·         Afinal, se a corrupção não for organizada no Brasil, o que vai ser? (Luís Fernando Veríssimo).
·         Viver lá fora é bom mas é uma merda; viver no Brasil é uma merda mas é bom (Tom Jobim).
·         Reparem como o brasileiro se espanta cada vez menos (Nelson Rodrigues).
·         Querem saber de uma coisa? No Brasil, tudo é possível (Lima Barreto).
·         Vomitar no Nordeste é símbolo de status (Ivan Lessa).
·         De quinze em quinze anos o brasileiro esquece os últimos quinze anos (Ivan Lessa).
·         Disse e repito: não entendo essa onda toda a respeito dos nossos problemas carcerários. São facílimos de resolver: é só botar na cadeia gente de melhor gabarito social (Millôr Fernandes).
·         Dormia a nossa pátria-mãe tão distraída, sem perceber que era subtraída em tenebrosas transações (Chico Buarque).
·         Eu não tinha entendido o termo “capitalismo selvagem” até que um representante do FMI desceu em Brasília, pediu que carregassem sua bagagem e um ministro da área econômica disse: “Sim, bwana” (Luís Fernando Veríssimo).

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Essa “gracinha” ao meu lado é a cantora Ademilde Fonseca, 90 anos, a Rainha do Chorinho, durante o lançamento do meu livro “As Divas do Rádio Nacional”, em julho de 2010, no teatro Baden Powell, no Rio de Janeiro. Dói reconhecer: eu pareço mais velho que ela.
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2 comentários:

  1. Muito bom. Parabéns por dar espaço ao Álvaro Vieira.

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  2. Na busca por Alvaro Pinto encontrei o velho professor do Penedo. Parabéns pelas ideias e bom gosto.

    Abr. MEO

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