sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Só no Brasil isto acontece: um grande escritor esquecido

Em 2001 publiquei no Correio Braziliense o artigo abaixo sobre o escritor Marques Rebelo. Em 2001, comemorava-se o 70º aniversário do primeiro livro do escritor, “Oscarina”. Encontrei nos meus guardados o artigo, que, a meu ver, merece ser divulgado: afinal, em 2011, “Oscarina” completou 80 anos.
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Marques Rebelo era o pseudônimo literário de Edy Dias da Cruz, carioca, nascido em 6 de janeiro de 1907 e falecido em 26 de agosto de 1973. Era da Academia Brasileira de Letras (eleito em 1964), onde ocupava a cadeira 9. Escreveu Oscarina (1931), Três caminhos (1933), Marafa (1935), A estrela sobe (1939), Stela me abriu a porta (1942), Vida e obra de Manuel Antônio de Almeida (1943). Escreveu, ainda, O espelho partido, obra programada para ter sete volumes, dos quais publicou apenas três: O trapicheiro (1959), A mudança (1962) e A guerra está em nós (1968). Concluo esta breve apresentação afirmando o óbvio: Marques Rebelo era um grande escritor - e todos nós, que admiramos a sua obra, devemos saudar os 80 anos de Oscarina, seu livro de estreia.
Na história da literatura brasileira, Marques Rebelo ocupa posição especial. Ele foi talvez o último representante do típico romance urbano carioca, cujos predecessores mais ilustres foram Manuel Antônio de Almeida, Machado de Assis e Lima Barreto. Utilizava, nos contos e romances, os modismos de opinião de que o Rio de Janeiro sempre foi tão pródigo, expressando-se, sem afetação ou artificialismo, por meio da linguagem desatada e maneirosa do carioca, repleta de malícia e reticências.
Marques Rebelo foi, sobretudo, o romancista da baixa classe média da Tijuca e bairros adjacentes, procurando fixar, com grande capacidade descritiva, os dramas, comédias e compensações daquela gente afeita a um cotidiano inapelavelmente rotineiro e mofino. A prosa do autor de Marafa oscilou sempre entre a mordacidade e o lirismo, desenhando, com as tintas de um realismo seco, quase metálico, uma galeria inesquecível de personagens: a mocinha que aspirava ser uma cantora de sucesso, o militar que procurava esquecer as humilhações da caserna, o funcionário de baixa categoria que só pensava na aposentadoria, "malandros, boêmios e sambistas, gente que não é nitidamente proletária nem chega a ser pequena burguesia", como acentuou Mário de Andrade.
Marques Rebelo foi o escritor que melhor fixou o fascínio que as novelas de rádio - e, por extensão, os mexericos da Candinha e as fofocas sobre Emilinha e Marlene - causavam numa população sofrida que ainda acreditava que o Brasil era o país do futuro. Bem verdade que os livros de Marques Rebelo eram, como se diz, a exata cara do seu tempo; um tempo em que havia carnaval de rua, os grandes clássicos do futebol do Rio eram jogados no campo do Vasco, as chanchadas de Oscarito e Grande Otelo enchiam os cinemas, a garotada colecionava estampas Eucalol ou figurinhas de bala Ruth, o refrigerante preferido era o Guará ("melhor refrescante não há"), o bonde era o principal meio de transporte urbano - e, principalmente, o Rio de Janeiro era uma cidade quase sem violência.
Oscarina, a aniversariante do ano, é um livro de contos - e, ao relê-lo para escrever o presente artigo, identifiquei nele contos verdadeiramente excepcionais, como o que dá título à obra, Onofre, o terrível e Na rua dona Emerenciana, que mestre Graciliano Ramos, nos fundos da livraria José Olympio, na Rua do Ouvidor, costumava recitar trechos inteiros. O conto era, sem dúvida, a sua vocação mais alta; permitia-lhe, notou Josué Montello, "a síntese da vida na síntese da página literária harmoniosamente trabalhada". Literatura, dizia Marques Rebelo, é cortar o que foi escrito em excesso.
O maior sucesso editorial de Marques Rebelo foi, por certo, A estrela sobe, romance adaptado, em 1974, para o cinema por Bruno Barreto, tendo a notável Betty Faria no papel de Leniza, a jovem suburbana que sonhava ser cantora de rádio. A história de Leniza é pungente; Marques Rebelo descreve, com extremo realismo, a trajetória e as reações de Leniza, que, aos poucos, vai saindo do seu pequeno mundo de sonhos para penetrar, dolorosamente, na realidade de um mundo sem contemplações com os puros. Aos trancos e barrancos, à custa de sofrimentos, sustos e traições, Leniza vai, aos poucos, aprendendo que não basta apenas o talento e o ideal - e que a vida, como diria Paulinho da Viola, não é só isso que se vê: é um pouco mais.
Mas a principal obra de Marques Rebelo, contudo, é O espelho partido, que, como já sabemos, ele deixou incompleta. Extenso roman-fleuve - ou, como querem os puristas, romance-rio - estruturado sob a forma de um diário escrito por um escritor carioca (daí dizer-se, com certa razão, que a obra era uma autobiografia), cujos comentários e registros refletiam não só a vida do narrador, mas, sobretudo, a época em que ele vivia.
Os três volumes de O espelho partido somam, na edição que possuo, da Nova Fronteira, 1.700 páginas, o que dá idéia da dimensão do projeto imaginado por Marques Rebelo, previsto em sete volumes. O trapicheiro foi, sem dúvida, o mais citado da trilogia, provavelmente pela surpresa que causou, em estilo e forma, quando foi lançado, em 1959. Nelson Werneck Sodré colocou-o no rol "dos grandes livros do patrimônio literário brasileiro, comparável a Memórias de um sargento de milícias, Dom Casmurro e São Bernardo, grandes marcos da ficção brasileira". Wilson Martins considerou O trapicheiro "uma obra marcante, não só em si mesma, mas também pelo que representa na fixação das principais correntes da nossa literatura moderna". Tristão de Athayde destacou que "o memorialista é tão vivo que se confunde com o romancista, redundando em um dos maiores estilistas de nossas letras". Escreveram também sobre a obra - e positivamente - Adonias Filho, Barbosa Lima Sobrinho, Josué Montello, Raquel de Queirós, entre outros.
Otto Maria Carpeaux observou que a literatura de Marques Rebelo era altamente apreciada pelos conhecedores, embora ele sofresse também um boicote dos críticos e dos noticiaristas literários. Paulo Francis fez observação semelhante. Ambos, Carpeaux e Francis, concordavam que isso se devia à "fabulosa capacidade do escritor de, pela maledicência, arranjar inimigos" e "às posições polêmicas de Rebelo", a quem "vários amigos e admiradores chamavam carinhosamente de louco, quando vinha à tona o assunto das suas espinafrações".
Esse era um traço marcante da personalidade de Marques Rebelo: a rara capacidade de assumir posições - e defendê-las ferozmente acima de quaisquer motivações ou conveniências. Era, cabe repetir, um grande escritor, mas provocou polêmicas e produziu muitos inimigos, inclusive na imprensa, devido à sua maneira desabrida de emitir julgamentos sobre fatos e pessoas. Era, por isso mesmo, invariavelmente acusado de ser movido por razões pessoais. Não ligava. Sorrindo, limitava-se a dar de ombros, como quem dizia, muito ao estilo do surpreendente e impagável humor carioca: "não calo; prefiro virar penico".
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Os grandes da MPB (6)

Hoje é dia de João Nogueira, o grande sambista, cantor e compositor. Nogueira nasceu em 1941 e faleceu em 2000. No clipe, Nogueira canta "Mineira", no Clube do Samba.


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