Volto ao assunto Pinheirinho. Numa das últimas edições desse Papo de Amigos transcrevi um notável artigo da jornalista Ruth de Aquino sobre os acontecimentos no Pinheirinho. Hoje, volto ao assunto – e ponho no ar três vídeos que aprofundam a discussão sobre o massacre da polícia paulista.
Este Velho Professor do Penedo se transformou num velho frouxo – e confessa que ficou emocionado (demais) ao ver os vídeos. A elite brasileira e os políticos de todos os partidos (com as exceções de praxe) odeiam o povão.
É importante que todos assistam os três vídeos. E percebam como os políticos e os juristas brasileiros tratam parcelas pobres e miseráveis da sociedade.
Notem também que nenhum dos vídeos são da TV Globo, que, por sinal, defendeu a ação da polícia e chamou a população do Pinheirinho de "invasores que se recusaram a aceitar a ordem judicial".
"São povos que possuem todos os elementos para serem prósperos, adiantados e felizes, e que, no entanto, arrastam uma vida penosa e difícil: por quê?"
Manoel Bomfim
As palavras de Manoel Bomfim, escritas em 1905, continuam ainda hoje a pesar na nossa consciência, sem resposta. Afinal, porque o povo brasileiro continua a amargar uma vida difícil e penosa apesar de possuir tantas e tamanhas condições de ser feliz e próspero? Que insondável atavismo é esse, que nos condena sempre ao atraso, à ignorância, à dependência e à falta de esperança. Como explicar o atoleiro histórico de um país com tantas possibilidades e riquezas como o Brasil?
A Amazônia é um território de imenso potencial e notável soma de recursos naturais, além de possuir a mais extraordinária - em extensão, volume e beleza - bacia hidrográfica do planeta. Este é, sem dúvida, o seu esplendor, mas é, também, a sua miséria, pois a presença de tantas riquezas - madeireiras, minerais, biológicas e aquíferas - estimula a convergência sobre a Amazônia de interesses poderosíssimos, os quais dificilmente podem ser detidos ou controlados. "Para que a afirmação da verdade alcance seu pleno efeito", dizia Shaw, "é preciso dizê-la diretamente, brutalmente". Pois bem: a Amazônia corre, hoje em dia, grande perigo, agravado em muito pela omissão e leniência do atual governo.
Existe, afinal, uma ameaça efetiva de internacionalização da Amazônia?
Não só existe como as ameaças e as investidas, a julgar pelas evidências, irão aumentar nos próximos anos. Sob as copas das árvores daquele impressionante domínio florestal, nos igarapés, nos igapós, nos estuários, na biodiversidade, no solo, no subsolo, nas águas -, enfim, no cenário magnífico da Amazônia, "dormem" trilhões de dólares.
E esses trilhões são sonantes demais para não serem ouvidos pelo império, para usarmos uma expressão de Antonio Negri e Michael Hardt. "Nas últimas décadas", disseram os dois autores, "vimos testemunhando uma globalização irresistível e irreversível de trocas econômicas e culturais. Juntamente com o mercado global e com circuitos globais de produção, surgiu uma ordem global, uma nova lógica e estrutura de comando - em resumo, uma nova forma de supremacia". E concluíram: "O império é a substância política que, de fato, regula essas permutas globais, o poder supremo que governa o mundo".
Hoje, e todos (inclusive as autoridades) sabemos disso, são contrabandeados da Amazônia madeiras nobres, recursos genéticos, minérios - e gente, mulheres, crianças e adolescentes para a prostituição. (A revista IstoÉ, de 5 de junho de 2002, publicou impressionante matéria sobre o aliciamento de meninas da Amazônia para trabalhar em boates na América Latina e Europa, onde se prostituem, se viciam e, finalmente, morrem ou são descartadas).
Tudo isso, porém, por mais horror que nos cause, não é uma fatalidade histórica, da qual jamais nos livraremos. As vicissitudes e as dores amazônicas são históricas, ou seja, são o produto da nossa herança colonial, marcada pela submissão externa, e da ação nociva e deletéria das nossas classes dominantes, antigas e modernas, para quem o povo brasileiro é uma coisa reles e o Brasil, apenas uma mancha e um nome no mapa. A sociedade brasileira, como observou Darcy Ribeiro, é uma sociedade enferma de desigualdade, enferma de descaso por sua população e enferma de indiferença pelas coisas do país. É preciso ter a coragem de ver e dizer tudo isso, pois só assim, um dia, quem sabe, poderemos romper a nossa condenação ao atraso, à pobreza e à obediência servil ao império.
Repito: a Amazônia corre perigo. Sabemos que muitos defendem a ideia de que a Amazônia, tão espoliada e ferida, deveria ser submetida a uma jurisdição especial (uma espécie de soberania compartilhada), a cargo de organismos internacionais e de organizações não governamentais selecionadas, supervisionadas por nações ditas “reconhecidamente responsáveis”. É a tese, defendida por organismos internacionais, ONGs e multinacionais: a Amazônia como patrimônio da humanidade.
Os erros do passado não explicam nem justificam as omissões do presente ou a descrença no futuro. A verdade é que não dispomos de um projeto minimamente consistente para a Amazônia.
Mas, afinal, porque a Amazônia, tão rica e bela, carece de um projeto integrado, popular e sustentável de uso dos seus recursos? Marcel Bursztyn observou que "uma análise dos resultados de sucessivas políticas e iniciativas governamentais voltadas à Amazônia, ao longo das últimas décadas, revela que a intensificação da ação pública na região dá continuidade e amplifica o padrão histórico de desacertos magníficos. O desconhecimento, a falta de avaliação prévia, o descaso frente a possíveis resultados negativos da intervenção humana, são traços que se repetem em diferentes experiências malsucedidas". A Amazônia, apesar de possuir tantas riquezas, jamais esteve envolvida num projeto sério, contínuo e sustentável. Ironicamente, a Amazônia, de um lado, sempre foi tratada com descaso pelas autoridades governamentais e, de outro com profundo interesse pelo capital internacional.
Em suma, a Amazônia não tem um projeto - até porque o Brasil também não tem um projeto nacional, do qual o projeto da Amazônia poderia ser um desdobramento regional. É elementar. Não existindo um projeto nacional, o Brasil adotou, como seu, o projeto dos outros, o projeto que interessa aos centros dinâmicos da economia mundial. O Brasil, hoje, vive de ficções: faz de conta que estamos nos desenvolvendo, faz de conta que não há desemprego, que o povo está feliz, que há distribuição de renda, que somos, enfim, uma maravilha de país, maravilhosamente governado.
Estamos pagando por nossas fantasias - e, no futuro, quando a Amazônia for apenas um retrato na parede, vamos sentir, no corpo e na alma, o quanto custou a nossa cumplicidade e a nossa omissão.
Bem verdade que a Amazônia é um enorme desafio - econômico, político, científico e tecnológico. Sabemos que a região é riquíssima, mas não sabemos perfeitamente como explorá-la ou pô-la a serviço das necessidades brasileiras. No Brasil, hoje, discute-se tudo: o câncer do Lula, o Big Brother, o novo corte de cabelo do Neymar, a metafísica das novelas televisivas - mas não se debate uma região de mais de cinco milhões de quilômetros quadrados, extremamente rica em todos os sentidos. Por quê?
Quis, com o presente texto, provocar debate e reflexão. O Velho Professor do Penedo dedicou parte da minha vida ao esforço de melhorar o Brasil. Lutou em várias trincheiras – a última das quais é o laptop onde dedilho meus livros, artigos e brasas.
Ainda não fomos inteiramente derrotados, talvez tenhamos ainda a chance de recuperar o tempo perdido e salvar a Amazônia, que já nos acena um adeus. Não podemos ficar indiferentes e descuidados dos nossos problemas mais candentes.
A Amazônia é, na verdade, patrimônio do povo brasileiro.
Breves notas ao texto acima
Nota 1: Enquanto intelectuais do porte de Tavares Bastos defendiam a abertura do rio Amazonas ao comércio internacional, na pequena cidade de Juazeiro, Ceará, um homenzinho baixo e cabeçudo, cabelos brancos e crespos, sempre vestido de negro, protestava contra a venda de terras da Amazônia ao ricaço norte-americano Henry Ford. Mais: chegava mesmo a defender a luta armada do povo como forma de defesa da soberania da Amazônia. Quem era esse homenzinho tão fervorosamente nacionalista? Era o padre Cícero Romão Batista, o "Padim Ciço", conforme o chamavam os crentes.
Nota 2: Em 1991, a Merck Pharmaceuticals, multinacional norte-americana, pagou 1 milhão de dólares pelo direito de manter e analisar amostras de plantas coletadas nos parques de floresta tropical úmida da Costa Rica. Esses direitos incondicionais de bioprospecção concedidos a uma multinacional (com receita de 4 bilhões de dólares anuais) em troca de míseros 1 milhão de dólares não respeitam os direitos das comunidades locais nem o governo da Costa Rica.
Nota 3: Anos atrás, o Jornal da Ciência informou que a Estação Científica Ferreira Penna, do Museu Paraense Emílio Goeldi, situada na Floresta Nacional de Caxiuanã, no município de Melgaço, no Pará, foi (notem o eufemismo!) selecionada para integrar o programa mundial de monitoramento da biodiversidade, chamado “Ecologia Tropical, Inventário e Monitoramento” (TEAM Initiative), coordenado pela Conservation International (CI), organização privada, sem fins lucrativos, dedicada à conservação e ao uso sustentado da biodiversidade. O TEAM Initiative vai integrar as pesquisas e as informações de bases instaladas em diversos pontos do globo, exigindo que em todas essas 50 bases sejam adotadas métodos científicos padronizados. Este fato, que, a rigor, afeta a nossa soberania, é um indicador claro daquela nova jurisdição política que pode estar sendo armada como sucedâneo à internacionalização da Amazônia.
Nota 4: Essa história de Amazônia, patrimônio da humanidade é uma espécie de senha, cujos fins são a dominação e a internacionalização de parte do território brasileiro. Alguém já ouviu falar em Sibéria, patrimônio da humanidade? Ou Califórnia, patrimônio da humanidade? Não? Pois é.
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Leituras etc.
O Velho Professor do Penedo leu, recentemente, três livros, que recomenda:
·“O espetáculo mais triste da terra”, de Mauro Ventura. Trata-se de uma belíssima e comovente reportagem (na verdade, reconstituição) dos fatos e circunstâncias que cercaram o incêndio do Gran Circo Norte-Americano, em Niterói, em 1961. No incêndio, morreram mais de 500 pessoas.
·“O enigma do capital e as crises do capitalismo”, de David Harvey, economista americano. Harvey explica a crise de 2008 e reforça a ideia de Karl Marx acertou ao prever as crises do capitalismo.
·“O cemitério de Praga”, de Umberto Eco. Um romance tão sensacional quanto “O nome da rosa”, do mesmo autor.
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Cena (verdadeira) do cotidiano brasiliense
Cenário: uma rua qualquer de Brasília. O ardente sol de Brasília queimava o asfalto e as pedras da calçada. De repente, uma mulher com o filho no colo caminha despreocupadamente, indiferente ao choro do filho – à beira da desidratação – que trás no colo. Em sentido contrário, vem uma senhora. Segue-se, então, o seguinte e rápido diálogo:
Senhora – O menino está sofrendo no sol, mamãe.
Mamãe – Vá à merda!
O Velho Professor do Penedo jura que assistiu a cena.
Esta semana o Velho Professor do Penedo teve que enfrentar um procedimento médico, a fim de verificar “in loco” como andava o seu velho e castigado coração. Tudo em ordem, por enquanto – foi o saldo de um procedimento que obrigou o Velho Professor do Penedo a permanecer dois dias internado. Tudo em ordem, digo mais uma vez.
Dando prosseguimento a este Papo de Amigos, o Velho Professor do Penedo apresenta abaixo um texto a propósito de dois livros que li com extrema satisfação: “Renato Archer: energia atômica, soberania e desenvolvimento”, de Álvaro Rocha Filho e João Carlos Vitor Garcia (Rio de Janeiro: Contraponto, 2006, 272 p.) e “Renato Archer: diálogo com o tempo”, de Regina da Luz Moreira e Leda Soares (Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, 2007, 379 p.).
Depoimentos para a história
A história de um país não se conta apenas pela história dos seus processos econômicos, políticos, militares e sociais. Faz parte da história de um país a trajetória de seus grandes vultos, e não só os do campo político, econômico, militar e social. Os grandes vultos de um país estão também nos campos da cultura, da arte, da literatura, da música, do folclore – e, como é o caso do personagem sobre o qual pretendo escrever, no campo da política científico-tecnológica. Como acentuou Hegel, nos caracteres dos indivíduos notáveis, dos grandes vultos, manifestam-se o espírito de sua época e os acontecimentos marcantes da história de um país e de um povo.
Bem verdade que Renato Archer não se destacou apenas no campo da ciência e da tecnologia. Ele teve também uma participação ativa na política nacional – antes, durante e depois do regime militar. No seu estado de origem, o Maranhão, Archer foi uma espécie de “dissidente oligárquico típico”. Era um conciliador, um negociador, um dialógico, um político capaz de trafegar, com elegância e habilidade, entre todas as correntes políticas, da direita à esquerda. Ninguém lhe negava a voz e a vez, pois todos sabiam que de Renato Archer vinham sempre argumentos bem construídos e ponderados, os quais estavam sempre a serviço do desenvolvimento brasileiro e do nacionalismo.
E foi justamente a defesa do desenvolvimento e do nacionalismo que o levou a pensar, formular e articular políticas na área de ciência e tecnologia como a participar ativamente da sua administração institucional. Como Álvaro Alberto, a quem admirava e com quem trabalhou, tinha consciência de que um povo só é soberano e livre se dominar o conhecimento científico e tecnológico. Sem isso, um país diante de um mundo integrado pelo saber e pelo conhecimento assemelha-se a um analfabeto perdido na sociedade letrada e culta.
Renato Archer: energia atômica, soberania e desenvolvimento e Renato Archer: diálogo com o tempo são livros que devem ser lidos, discutidos e pensados por professores, estudantes e estudiosos dos problemas brasileiros. Todos têm muito a aprender com eles. São dois conjuntos de entrevistas que Renato Archer concedeu sobre a sua vivência política e a sua trajetória na área da ciência e da tecnologia. Cobre um largo período histórico – do término da Segunda Guerra Mundial, época em que na condição de Chefe de Gabinete do governador maranhense, Sebastião Archer da Silva, seu pai, coordenou o apoio da bancada do seu estado à lei que iria criar o Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq), ao fim da Guerra Fria e à derrocada da ditadura brasileira. Archer faleceu em 20 de junho de 1996. Tinha 74 anos.
Na vida pública de Renato Archer, tão cheia de momentos marcantes, há episódios que, por sua expressividade, devem ser destacados. O primeiro deles ocorreu em meados dos anos de 1940 quando foi convocado pelo almirante Álvaro Alberto para auxiliá-lo no processo de criação do CNPq, que deveria ser o órgão encarregado, entre outras coisas, de levar adiante a política nacional de energia atômica. Pode parecer, hoje, um despropósito, mas na época não só havia, por parte da opinião pública e, principalmente, dos políticos, total desinteresse e descaso acerca dos problemas da ciência e da energia nuclear como existia uma campanha orquestrada, a partir da Embaixada dos Estados Unidos, no sentido de negar ao Brasil o direito de dominar essa tecnologia. Parece incrível, mas o projeto de criação do CNPq, que deveria tramitar em regime de urgência urgentíssima, rodou no parlamento brasileiro durante dois anos até virar lei. E mais um ano até ser oficialmente instalado. A demora não foi por acaso.
Segundo Archer, Álvaro Alberto, primeiro presidente da nova instituição, tinha plena consciência da importância da criação do CNPq, por isso lutou por ele. Apesar de já existirem no Brasil numerosas instituições científicas, o CNPq, conforme idealizava Álvaro Alberto, seria a instituição responsável pela formação de recursos humanos de alto nível, que o Brasil carecia e necessitava, e pela institucionalização de uma política de desenvolvimento científico e tecnológico, principalmente na área nuclear. Era, no cenário de desenvolvimento que se pretendia construir, uma instituição estratégica.
Foi nessa época, em meio aos debates que se sucediam sobre a questão, que Álvaro Alberto formulou a tese das compensações específicas. Durante reunião do Conselho de Segurança Nacional, o ministro das Relações Exteriores, João Neves da Fontoura, defendeu uma posição absurda e entreguista, que, segundo ele, lhe fora transmitida em Washington por representantes do governo americano: ou o Brasil enviava tropas para a Coréia (o governo brasileiro sofria pressões externas e internas nesse sentido) ou fornecia minerais radioativos para os Estados Unidos. Todos sabiam, porém, que João Neves, mais realista que os próprios norte-americanos, defendia que o Brasil fizesse as duas coisas. Presente à reunião, Álvaro Alberto não perdeu a oportunidade de encostar João Neves contra a parede: o Brasil exportaria os minérios para os Estados Unidos, mas como pagamento não receberia dólares, mas tecnologia e equipamentos necessários ao desenvolvimento tecnológico brasileiro na área. Era a tese das compensações específicas. Ela não frutificou, inclusive porque a Lei Mac-Mahon proibia a exportação de qualquer informação sobre energia nuclear para qualquer país do mundo. Mas, no episódio, a atitude corajosa de Álvaro Alberto e a subalternidade do chanceler brasileiro ficaram perfeitamente claras.
Um esclarecimento: a Lei Mac-Mahon, aprovada no Congresso americano em agosto de 1946, representou o início da tentativa dos Estados Unidos de propor a criação de uma autoridade internacional que seria a proprietária de todas as minas de Urânio do mundo, administraria as usinas de preparação de combustível e as produtoras de energia elétrica de fonte nuclear. Como disse Archer: “Nas considerações, o documento [Lei Mac-Mahon] afirmava que a energia atômica constituía-se numa esperança para o mundo, porque era a possibilidade de produzir energia barata, mas, ao mesmo tempo, expunha o mundo a riscos de proliferação de armas nucleares, como a bomba atômica, que era uma arma destruidora. Propunha ao governo americano que se estabelecesse o monopólio absoluto sobre todo o conhecimento, e que se tentasse criar um organismo internacional de controle, da confiança dos Estados Unidos” (In: Renato Archer: diálogo com o tempo, p. 56).
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Álvaro Alberto foi uma figura extraordinária, um batalhador incansável, a quem Archer, nos dois depoimentos, rendeu homenagens. Enfrentou forças poderosas de peito aberto. Conforme notou Archer, ele acreditava ser decisivo para o futuro do Brasil mobilizar o “saber para fazer” e utilizar o Estado como instrumento de promoção e mobilização do “saber para a ação”. Quando ministro da Ciência e Tecnologia, Archer não esqueceu o velho mestre: deu o seu nome ao maior prêmio na área, a ser entregue pelo presidente da República. O primeiro agraciado com o Prêmio Álvaro Alberto de Ciência e Tecnologia, em 1985, foi Celso Furtado. Premiação, aliás, justíssima e de alto valor simbólico, pois dada a outro brasileiro que acreditava no desenvolvimento e no Brasil.
O segundo momento significativo na trajetória de Renato Archer, ele o vivenciou na Comissão Parlamentar de Inquérito que, em 1955, discutiu a questão da energia nuclear. Trata-se de um episódio exemplar, que está a merecer, um dia, ser historiado em profundidade. Após o suicídio de Getúlio Vargas, Álvaro Alberto foi demitido do CNPq e as orientações da política de energia atômica foram totalmente revistas. Em depoimento na Câmara dos Deputados, Juarez Távora, inquirido por Archer, informou que demitira o “honrado, digno e patriota” almirante Álvaro Alberto por incapacidade administrativa. Archer não se fez de rogado: abriu o livro Átomos para a paz, do próprio Juarez, e leu trecho em que ele fazia elogios rasgados à capacidade administrativa de Álvaro Alberto. “Vossa Excelência, então, repudia esse livro?”, indagou Archer. A resposta de Juarez causou espanto e risos: “Não. Mantenho as duas coisas”. Segundo Archer, o velho Otávio Mangabeira, que estava sentado, levantou-se, foi ao seu encontro e disse: “Meus parabéns, meu rapaz”. E saiu da sala, consternado com o papelão de Juarez Távora.
A política traçada por Álvaro Alberto, com o apoio irrestrito de Getúlio, atendia unicamente aos interesses nacionais, pois visava, antes de tudo, o domínio tecnológico de uma área estratégica. A nova política, liderada por Juarez Távora, inverteu totalmente o enfoque: as pesquisas internas foram suspensas e as negociações com a Alemanha, que envolviam assistência técnica e transferência de conhecimento, foram interrompidas. Para o lugar de Álvaro Alberto, que coordenava a política atômica, Juarez Távora designou seu primo, Elysiário Távora, funcionário da Embaixada dos Estados Unidos. Archer fez esta denúncia no plenário da Câmara, diante de um Juarez Távora lívido e acabrunhado.
Na época, foi instaurada na Câmara dos Deputados a referida Comissão Parlamentar de Inquérito, cujo presidente foi o deputado Gabriel Passos e relator o deputado Dagoberto Salles, dois políticos nacionalistas. Um dos membros mais ativos da Comissão foi o então deputado Renato Archer. No relatório final da CPI estão expostos os acontecimentos e as mudanças ocorridas no programa durante o governo Café Filho, por influência direta do general Juarez Távora que, a propósito de defender o mundo livre do perigo comunista, via o Brasil sob o olhar dos interesses dos Estados Unidos. (O relatório da CPI foi posteriormente publicado. V. Salles, Dagoberto. Energia atômica: um inquérito que abalou o Brasil. São Paulo: Fulgor, 1958, 240 p. Tal livro, fundamental ao entendimento daquele período histórico, só é encontrado, hoje, nos sebos.)
Aliás, no seu depoimento, Archer contou detalhes da acalorada discussão que teve com Juarez Távora, durante a qual desmontou, ponto a ponto, os comentários abjetos que começavam a correr acerca da idoneidade de Álvaro Alberto e da política de energia atômica por ele formulada. A estratégia era, de um lado, desqualificar Álvaro Alberto e, de outro, provar que o brasileiro não tinha condições de dominar tecnologia tão avançada. Ainda nessa época, Archer pronunciou, no plenário da Câmara, um longo e eloquente discurso, no qual historiou a evolução e os percalços da política nuclear brasileira. (O discurso de Renato Archer, com todos os apartes que recebeu, encontra-se em anexo ao livro de Dagoberto Salles).
Outro momento precioso na vida de Renato Archer se deu propriamente no campo político. A partir de 1966, inúmeros aliados da ordem autoritária estavam se distanciando entre si ou sendo afastados das forças que governavam o Brasil. Falava-se, então, da existência de um possível conflito entre as chamadas “linhas dura e mole” das forças armadas, o que, conforme se dizia, iria criar uma cisão na estrutura de poder. Era, de acordo com as análises da época, uma oportunidade que devia ser aproveitada.
Pelo lado da oposição, comentava-se a formação de uma ampla frente política - denominada pelos jornais de Frente Ampla -, que reuniria Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek (exilado em Lisboa) e João Goulart (no Uruguai). Renato Archer foi um dos articuladores da Frente, e estava negociando o ingresso de Jânio Quadros e Magalhães Pinto na frente oposicionista. Foi Archer que viabilizou o encontro entre Lacerda e Jango. Foi uma costura política fina e cuidadosa, pois envolvia a superação de ressentimentos e de lembranças ainda vivas e dolorosas. A Frente Ampla, como se sabe, não deu em nada, e não apenas porque, hobbesianamente, todos desconfiavam das intenções políticas de todos. Os militares não viam com bons olhos a aliança política que estava se formando. No fundo, eles sentiam que estavam perdendo o controle sobre a sociedade. Exemplos disso eram o avanço do movimento estudantil, que granjeava grande apoio popular, o posicionamento crítico de alguns órgãos tradicionais da imprensa e a ação cada vez mais desinibida da oposição parlamentar. O basta dos militares a tudo isso foi aprofundar a ditadura, mediante o Ato Institucional nº 5.
Em dezembro de 1968, alguns dias após a edição do AI-5, Renato Archer teve o seu mandato de deputado federal cassado e os direitos políticos suspensos por dez anos, seguidos de um duro período de perseguição política e policial. Foi preso três vezes. Teve a residência invadida e o filho de seis anos ameaçado de sequestro por um agente armado. Na última prisão, na Vila Militar, Archer levou empurrões, foi destratado, trancafiado a chave e cadeado num cubículo infecto e úmido. Permaneceu incomunicável durante trinta e cinco dias. O risco que enfrentou ao articular a Frente Ampla foi a maneira que Archer encontrou de lutar contra a ditadura.
O quarto momento significativo na vida de Archer foi, sem dúvida, o período que vai da democratização às suas atividades como ministro (da Ciência e Tecnologia e Previdência e Assistência Social) e presidente da Embratel.
A criação do Ministério da Ciência e Tecnologia era uma velha aspiração da comunidade de pesquisadores brasileiros. Em 1956, Renato Archer, ao lado de San Tiago Dantas e com o apoio de diversos cientistas, tentou organizar uma campanha a respeito. Durante o governo João Goulart, o presidente do CNPq, Athos da Silveira Ramos, criou um grupo de trabalho com o objetivo de elaborar a proposta de constituição do ministério. O golpe militar de 1964 abortou a idéia. Os militares preferiram transformar o antigo Conselho Nacional de Pesquisas no atual Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, dando-lhe status de órgão coordenador da política científica e tecnológica, diretamente subordinado à Secretaria de Planejamento, da Presidência da República.
A proposta de criação do ministério só foi retomada em 1984. Renato Archer, escolhido por Tancredo Neves para ser o primeiro brasileiro a ocupar o cargo de ministro da Ciência e Tecnologia, foi mantido por José Sarney, seu adversário político no Maranhão.
Foi, talvez, até hoje, o período mais fecundo do novo organismo, apesar das dificuldades iniciais e das tantas controvérsias provocadas na ocasião, entre as quais a polêmica Lei da Informática, que, entre outros dispositivos, previa a reserva de mercado. Sob argumentos falaciosos, os opositores da Lei da Informática estavam, mais uma vez, negando a capacidade brasileira de dominar uma tecnologia de ponta e defendendo interesses das grandes multinacionais do ramo, principalmente as norte-americanas. Archer, mais uma vez, viu-se na contingência de assumir o papel de escudeiro dos interesses nacionais.
No Ministério da Ciência e Tecnologia, Archer procurou aproveitar determinadas oportunidades, que ele chamava de encruzilhadas tecnológicas, para levar adiante uma série de projetos de grande alcance. Um deles foi o Programa de Formação de Recursos Humanos em Áreas Estratégicas (Rhae). Este programa foi criado com o objetivo de conceder bolsas de formação em determinadas áreas, julgadas estratégicas, distinguindo-se do tradicional mecanismo de “balcão” adotado pelo CNPq. A proposta era que o Rhae estabelecesse uma estreita vinculação com o setor produtivo. As áreas estratégicas inicialmente definidas foram: biotecnologia, informática, mecânica de precisão, novos materiais e química fina. Hoje, o Rhae, embora tenha mantido na sua sigla a idéia de estimular setores estratégicos, perdeu as suas características iniciais. E terminou por se transformar naquilo que pretendia justamente substituir – um “balcão”. Archer tinha a percepção da importância decisiva da formação de recursos humanos como base operacional de políticas científicas e tecnológicas. Isto o levou a implantar, no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), o Laboratório de Integração e Testes para Satélites, e de construir, em Campinas, o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), um acelerador de partículas que, na época, só existia nos Estados Unidos, na Europa e na Rússia. Ainda durante sua gestão no MCT foi aprovada a construção e operação em órbita de quatro satélites de sensoriamento remoto e coleta de dados, em cooperação com a China.
Renato Archer, assim como Álvaro Alberto, tinha duas crenças: no nacionalismo, como política necessária de um país periférico que deseja alcançar o desenvolvimento, e na ação do Estado, como orientador daquele esforço. Não há como negar: o Brasil sente falta de políticos e gestores públicos como Renato Archer e Álvaro Alberto.
Os organizadores dos livros Renato Archer: energia atômica, soberania e desenvolvimento e Renato Archer: diálogos com o tempo deram uma notável contribuição à ainda escassa bibliografia brasileira da ciência e da tecnologia. E trouxeram à presença dos leitores o depoimento de uma grande figura pública. São depoimentos extensos, ricos em minúcias, fundamentais para a compreensão de um período especial da história brasileira. Concluo, não sem antes retomar uma provocação do jornalista Hermano Alves: quem se habilita a escrever a biografia política de Renato Archer?
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Semana passada, o Velho Professor do Penedo foi assistir a um show do Ney Matogrosso. No presente clipe, ela canta Segredo, de Herivelto Martins e Marino Pinto. Aliás, comemorou-se recentemente o 100º aniversário de nascimento de Herivelto Martins, um dos maiores compositores da música popular brasileira. Como o Brasil é um país sem memória, não houve qualquer comemoração. Ah, se fosse uma arara qualquer da música pop internacional (esse besteirol!), a Rede Globo faria a maior festa!
Mais uma vez recorro à jornalista Ruth de Aquino. O artigo que ela publicou na revista Época diz tudo. Como brasileiro, o velho professor do Penedo assistiu pela televisão cenas de pavor – e ouviu os repórteres e comentaristas da Rede Globo atacarem os moradores do Pinheirinho, que se recusavam a atender à decisão judicial. Uma desumanidade de repórteres e comentaristas de quinta categoria.
Quando ocorreu a pacificação da Rocinha, foram usados 1.500 soldados. No Pinheirinho, 2.000! Dois mil meganhas contra uma população pobre, ordeira e desarmada. Uma bela lição de democracia!
Leiam o artigo de Ruth de Aquino com calma. Reflitam. E vejam como estamos longe de viver numa democracia. Vejam também como agem os repórteres e comentaristas da Rede Globo, sempre curvados ao poder.
A “solução final” do Pinheirinho
Enquanto a terra for colocada como briga entre direita e esquerda, quem perderá serão os já destituídos.
Antes que os desabamentos no Rio de Janeiro joguem uma cortina de fumaça na cena mais degradante que vi nos últimos tempos no Brasil – o despejo forçado de milhares de trabalhadores no Pinheirinho, em São Paulo, no dia sagrado de descanso das famílias –, vou falar de desumanidade, egoísmo, cinismo. É pouco? Então vou falar também da violação de nossa Constituição. Que garante o direito à moradia adequada.
O que menos interessa é o jogo de empurra que se seguiu. O Legislativo empurra para o Judiciário e o Executivo, e vice-versa. Um partido empurra para o partido adversário. E vice-versa.
Enquanto a terra rural e urbana for colocada no Brasil como briga entre direita e esquerda, enquanto o deficit de 5,5 milhões de casas populares for jogado na conta do PSDB ou do PT, quem perderá serão os já destituídos. E a sexta economia do mundo continuará a exportar cenas subdesenvolvidas. Políticos intransigentes e sem visão existem no mundo todo. Mas o que se viu no dia 22 de janeiro de 2012 é proibido em países civilizados.
Dois mil policiais, com dois helicópteros, 220 viaturas, 40 cães e 100 cavalos, chegaram ao Pinheirinho quando a comunidade mal acordara, às 6 horas da manhã do domingo. Na casa do eletricista João Carlos Garrido, de 58 anos, “eles entraram falando ‘levanta, vagabundo’ e com um porrete de borracha bateram na minha perna enquanto eu estava dormindo, não me deixaram pegar nada, nem a féria da semana no meu bar”.
Eu me pergunto como as autoridades, pela falta de um cadáver, podem comemorar e “investigar se houve excessos”. A imprensa não foi autorizada a acompanhar a ação, o que é mais um direito violado. Os vídeos em tempo real não foram feitos por jornalistas.
Eram 1.600 famílias, 5 mil moradores numa comunidade com rua, igreja, boteco, praça, quitanda, casa de alvenaria, geladeira, fogão, televisão. E que foram tratados como delinquentes, afugentados por gás lacrimogêneo, cassetetes e balas de borracha.
Não sei se eu fugiria ou reagiria. Provavelmente, com filhos, fugiria. Não se brinca com a truculenta PM do Estado de São Paulo. Famílias foram para igrejas e abrigos da prefeitura. Na quarta-feira, 500 desterrados caminharam uma hora por 4 quilômetros, com crianças, idosos, cachorros e alguns pertences. Eles tinham sido obrigados a sair da Igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro.
Na chegada ao abrigo municipal, com telha de zinco e muito calor, uma grávida de três meses desmaiou. Não havia água nos banheiros. A Defensoria Pública abriu ação contra a prefeitura pedindo a retirada das famílias por falta de condições. Como o Estado vai garantir a escola, a saúde e o emprego de uma comunidade dispersada à força e sem teto?
O governo de Geraldo Alckmin em São Paulo e a prefeitura de Eduardo Cury, de São José dos Campos, ambos do PSDB, terão de conviver, em pesadelos, com sua responsabilidade sobre o drama dos retirantes do Pinheirinho, despejados de casas que habitavam havia oito anos.
Enquanto a terra for colocada como briga entre direita e esquerda, quem perderá serão os já destituídos
O Judiciário estadual de São Paulo também poderá refletir sobre a “reintegração de posse”. A juíza ignorou duas premissas. A primeira é que a propriedade não pode ser definida apenas por seu valor econômico, mas também por sua função social. Quem diz isso não sou eu, é a Constituição. Os despejados não tinham nenhuma alternativa de teto. A juíza os colocou no olho da rua. A segunda premissa eram as negociações, ainda em curso. A atitude mais sensata seria perguntar ao prefeito, ao governador, à presidente se tinham sido esgotadas todas as opções.
É uma novela de fracassos. A ocupação irregular começou em 2004. Foi permitida pelas autoridades. Não era área de risco. O terreno de 1 milhão de metros quadrados e R$ 180 milhões pertence ao megaespeculador Nagi Nahas, que deve à prefeitura R$ 16 milhões. Tanto em 2005 quanto agora, em janeiro, o Ministério das Cidades ofereceu recursos para São José dos Campos tornar o terreno público, urbanizar e regularizar a situação dos moradores. A oferta foi ignorada pela prefeitura.
A relatora da ONU Raquel Rolnik, arquiteta e urbanista, solicitou o fim imediato do cerco policial do Pinheirinho e a retomada de negociações para reassentar as famílias. “Se o Brasil quer virar gente grande, não pode só virar rico, precisa voltar à civilização e dispensar tratamento digno a todos os cidadãos”, diz Raquel.
Todos cumpriam ordens no Pinheirinho. Lavam as mãos, como numa guerra. Agora, prometem cadastrar “os desabrigados”, ampliar as moradias populares em São José dos Campos, incluir as famílias no Minha Casa Minha Vida. Isso deveria ter sido feito antes.
Sob os escombros do Pinheirinho, pode não haver corpos, mas havia vidas. Era essa “a solução final” que o Estado brasileiro buscava?
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Hoje, vamos ouvir o Samba do Avião, do Tom Jobim, na voz da Miúcha. As imagens do Rio de Janeiro são espetaculares.