sexta-feira, 6 de julho de 2012

Trambicagem e "jeitinho" brasileiro

O Velhote do Penedo escreveu o texto abaixo a pedido de um jornal universitário. Trata-se, na verdade, de uma crônica, que, depois de publicada, estimulou uma discussão entre alunos em sala de aula, segundo eu soube.

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O trambique
É preciso ter coragem para admitir. O brasileiro sofre da vocação do trambique.
Não, não me refiro aos corruptos que enxameiam os poderes executivo, legislativo e judiciário. Falo dos pequenos trambiqueiros: daqueles que furam fila; daqueles que estacionam seus carros nas vagas dos idosos ou dos deficientes físicos; daqueles que ultrapassam o sinal e não respeitam as faixas de pedestres. Falo daqueles que ultrapassam os limites de velocidade, trafegam pelo acostamento e ultrapassam pela direita. Falo, sobretudo, dos brasileiros que clamam por uma polícia honesta e eficiente, mas não se vexam de oferecer propina ao guarda de trânsito. Falo dos brasileiros que votam nos políticos envolvidos em processos de improbidade, gatunagem ou falta de decoro. Falo dos eleitores do Maluf, do abraço que Lula deu no Maluf, do sorriso que “tia” Dilma dirigiu ao Maluf em solenidade no Palácio do Planalto. Trambique não é só gatunagem. Trambique é um jeito de ser.
Portanto, ao falar em trambique não me refiro apenas aos notórios corruptos. Nem à justiça que não os trancafia os ladrões no xilindró. Falo das pessoas que conversam ao celular enquanto dirigem, falo daqueles que cospem no chão, daqueles que dirigem depois de muito beber. Falo, enfim, de todos que são incapazes de um gesto de ternura.
Falo de todos que repetem clichês, como direitos humanos, desenvolvimento sustentável, igualdade, democracia, paz, transparência, mas agem na contramão de tudo que apregoam. Falo daqueles que mantêm os arquivos da ditadura inacessíveis a todos nós. Falo dos professores que não se autorrespeitam e dos estudantes que compram diplomas. Falo dos torturadores. Dos que pactuaram com a violência da ditadura militar. Falo dos ministros que assinaram o AI-5. Falo dos intelectuais e dos artistas que só produzem mediante verbas do Estado.
Não, não falo apenas daqueles que fazem jogadas no mercado financeiro. Falo dos magistrados que negam habeas corpus a uma mulher que pixou paredes do Museu de Arte Moderna de São Paulo, mas são rápidos em ordenar a libertação de corruptos e criminosos. Falo dos brasileiros que poluem as praias, provocam incêndios criminosos, são traficantes de animais silvestres, de mulheres, de crianças, de órgãos humanos, de armas e drogas. Falo contra as autoridades brasileiras que estimulam o não-saber, a incultura e a ignorância. Falo das autoridades que reduzem os impostos dos automóveis, mas não fazem nada semelhante em relação aos livros, aos remédios, às mensalidades escolares.
O trambique é a fraude das fraudes. O trambique age sorrateiramente, faz parte da cultura brasileira, é irmão-gêmeo da ideologia do “primeiro eu”, do “tirar vantagem em tudo”, da “farinha pouca meu pirão primeiro”, do “depois de mim, o dilúvio”, do “sabe com quem está falando”, do “meu cargo me dá esse direito”, do “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. O maior dos trambiques é o “jeitinho brasileiro”, que é uma forma sorrateira e pretensamente graciosa de ludibriar o próximo e burlar a lei. Uma sociedade que elegeu o “jeitinho” como estilo e maneira de ser não tem futuro.
O trambique impregna e mutila o caráter nacional brasileira.

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Ouçam o cantor e compositor Carlos Lira (Primavera - Carlos Lira e Vinicius de Moraes)





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