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O trambique
É preciso ter coragem para admitir. O brasileiro
sofre da vocação do trambique.
Não, não me refiro aos corruptos que enxameiam os
poderes executivo, legislativo e judiciário. Falo dos pequenos trambiqueiros:
daqueles que furam fila; daqueles que estacionam seus carros nas vagas dos
idosos ou dos deficientes físicos; daqueles que ultrapassam o sinal e não
respeitam as faixas de pedestres. Falo daqueles que ultrapassam os limites de
velocidade, trafegam pelo acostamento e ultrapassam pela direita. Falo,
sobretudo, dos brasileiros que clamam por uma polícia honesta e eficiente, mas
não se vexam de oferecer propina ao guarda de trânsito. Falo dos brasileiros
que votam nos políticos envolvidos em processos de improbidade, gatunagem ou
falta de decoro. Falo dos eleitores do Maluf, do abraço que Lula deu no Maluf,
do sorriso que “tia” Dilma dirigiu ao Maluf em solenidade no Palácio do
Planalto. Trambique não é só gatunagem. Trambique é um jeito de ser.
Portanto, ao falar em trambique não me refiro apenas
aos notórios corruptos. Nem à justiça que não os trancafia os ladrões no
xilindró. Falo das pessoas que conversam ao celular enquanto dirigem, falo
daqueles que cospem no chão, daqueles que dirigem depois de muito beber. Falo,
enfim, de todos que são incapazes de um gesto de ternura.
Falo de todos que repetem clichês, como direitos
humanos, desenvolvimento sustentável, igualdade, democracia, paz, transparência,
mas agem na contramão de tudo que apregoam. Falo daqueles que mantêm os arquivos
da ditadura inacessíveis a todos nós. Falo dos professores que não se
autorrespeitam e dos estudantes que compram diplomas. Falo dos torturadores.
Dos que pactuaram com a violência da ditadura militar. Falo dos ministros que
assinaram o AI-5. Falo dos intelectuais e dos artistas que só produzem mediante
verbas do Estado.
Não, não falo apenas daqueles que fazem jogadas no
mercado financeiro. Falo dos magistrados que negam habeas corpus a uma mulher que pixou paredes do Museu de Arte
Moderna de São Paulo, mas são rápidos em ordenar a libertação de corruptos e
criminosos. Falo dos brasileiros que poluem as praias, provocam incêndios
criminosos, são traficantes de animais silvestres, de mulheres, de crianças, de
órgãos humanos, de armas e drogas. Falo contra as autoridades brasileiras que
estimulam o não-saber, a incultura e a ignorância. Falo das autoridades que
reduzem os impostos dos automóveis, mas não fazem nada semelhante em relação
aos livros, aos remédios, às mensalidades escolares.
O trambique é a fraude das fraudes. O trambique age
sorrateiramente, faz parte da cultura brasileira, é irmão-gêmeo da ideologia do
“primeiro eu”, do “tirar vantagem em tudo”, da “farinha pouca meu pirão
primeiro”, do “depois de mim, o dilúvio”, do “sabe com quem está falando”, do
“meu cargo me dá esse direito”, do “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. O
maior dos trambiques é o “jeitinho brasileiro”, que é uma forma sorrateira e pretensamente
graciosa de ludibriar o próximo e burlar a lei. Uma sociedade que elegeu o
“jeitinho” como estilo e maneira de ser não tem futuro.
O trambique impregna e mutila o caráter nacional
brasileira.
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Ouçam o cantor e compositor Carlos Lira (Primavera - Carlos Lira e Vinicius de Moraes)
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