Confissões de um ex-PM do Rio de Janeiro
O Velhote do Penedo pede a atenção dos seus leitores para o artigo abaixo:
O Globo / Domingo, 17 de novembro de 2013
Blog Repórter de Crime / Jorge Antonio Barros
Quem poderia imaginar que quatro PMs de uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) – cuja proposta é justamente a de levar segurança a áreas pobres – fossem capazes de torturar até a morte um inocente, com a cumplicidade dos superiores e a omissão de mais 21 policiais? Para qualquer pessoa que tenha conhecido a banda podre da PM, como aconteceu com Rodrigo Nogueira, carioca de 32 anos, o Caso Amarildo infelizmente não é exceção. Entre 2005 e 2009, o soldado Rodrigo usou a farda, o distintivo e as armas cedidas pela corporação para extorquir dinheiro de quem estivesse fora da lei ao cruzar seu caminho, torturar traficantes, negociar e vender a liberdade de perigosos assaltantes, julgar e condenar à morte criminosos e suspeitos de crimes, participar de ações da milícia e matar a sangue-frio, sem piedade. Pela primeira vez um ex-PM do Rio confessa publicamente ter cometido tamanhas atrocidades e revela como funciona o esquema que corrompe praticamente toda a cadeia hierárquica da corporação, do soldado ao coronel.
Para expiar sua culpa, Rodrigo criou um personagem, o sol-dado Rafael, o protagonista que narra em primeira pessoa "Como nascem os monstros – A história de um ex-soldado da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro" (Editora Topbooks), lançado mês passado. Qualquer semelhança com a realidade não é nenhuma coincidência. Depois que foi preso em novembro de 2009 na Unidade Prisional da PM – condenado por tentativa de homicídio e de extorsão – Rodrigo considerou uma missão revelar o sistema de uma das maiores corporações policiais do país, que está na berlinda por episódios como o de Amarildo ou por ter perdido o controle de manifestações que acontecem desde junho.
– Alguém precisava dar real entendimento ao que acontece dentro dos quartéis da PMERJ, quais são os fatores que transformam homens comuns, pais de família, em assassinos alucinados e sem remorso, e isso só seria possível através do prisma de quem viveu no inferno e que já não tinha mais nada a perder. Não escrevo para ser reconhecido ou festejado, mas sim para que o nível de podridão da PMERJ seja escancarado de vez e de uma maneira que não tenha mais volta, para que todos os leitores abram os olhos e percebam que não passamos todos de uma reles massa de manobra de interesses muito mais terríveis e obscuros, que todos dias vendem morte e insegurança, para poder pedir seu voto de novo daqui a quatro anos – afirma Rodrigo, em entrevista por carta, na qual não deixou de responder nenhuma das 42 perguntas.
Apesar de ter confessado vários crimes, o ex-PM Rodrigo Nogueira nega ter praticado justamente os crimes que o levaram a uma condenação total de 30 anos e oito meses de prisão, na esfera civil e militar. Ele foi condenado a partir do depoimento de uma vendedora ambulante, que acusou ele e um colega de terem tentado extorquir dinheiro dela e lhe dado um tiro no rosto, além de estuprá-la. O caso ganhou as páginas policiais em 2009. Por ironia, a mulher era a informante que havia ajudado o grupo de Rodrigo no plano de sequestro de um traficante, cuja liberdade custou R$ 250 mil, além de cinco fuzis.
– Não sei dizer especificamente quem foi o responsável pelo disparo que a atingiu, mas ela foi submetida a exame de corpo de delito que comprovou que ela não foi sofreu agressão sexual, como havia denunciado – defende-se o ex-PM, acrescentando que foi condenado por 4 votos a 3 e não quis fazer do livro "um plenário" para sua defesa.
Nascido e criado numa área pobre de Nova Iguaçu, Rodrigo cursou a Escola de Aprendizes Marinheiros de Santa Catarina, acreditando que ia participar de alguma guerra. Seu sonho era pegar em armas para defender a sociedade, e foi isso que acabou levando-o à Polícia Militar. O protagonista do livro inicia sua trajetória na PM como uma espécie de paladino da Justiça, realmente acreditando que iria "servir e proteger", como diz o slogan da corporação, copiado da polícias americanas.
Aos poucos, a convivência com colegas mais experientes, entregues à rotina de violência, o transforma no que ele acreditava ser um combatente urbano, estimulado pela retórica da guerra, na qual policiais viram soldados, e traficantes – e até moradores de favelas – seus inimigos mortais. Recebe então a senha para saquear os territórios conquistados, como despojos de guerra, e eliminar pessoas a seu próprio julgamento, contribuindo para o círculo vicioso de violência que impregna as ações da polícia nas grandes cidades do país.
– Rafael sente muito remorso pelos homicídios que cometeu, e isso fica bem claro na obra. É isso que mais me incomoda, tanto que a metamorfose só ocorre depois que ele mata a primeira vez – observa o ex-PM escritor.
Apesar de ter conhecido a corporação em 2005, Rodrigo conclui que foi a ditadura de 64 quem usou a PM, no combate à subversão, pois foi quando, segundo ele, a força aprendeu a torturar, sequestrar, "embuchar" (forjar provas) e até matar com extrema eficiência e funcionalidade. Com a volta da democracia, diz ele, esses poderes deveriam ter sido extintos. "Mas nenhum general foi aos batalhões, nenhum curso de reciclagem foi formulado, nada. Enquanto as tropas do Exército recolhiam-se aos quartéis, quem é que continuou nas ruas? A PM. Tudo foi jogado em cima de homens semianalfabetos, mal-pagos e mal-preparados", afirma no livro, num dos raros momentos em que tenta justificar os erros praticados pelos policiais.
Segundo Rodrigo, o ódio ao bandido vai sendo construído já no Curso de Formação e Aperfeiçoamento de Praças (CFAP), em Marechal Hermes. "A animosidade do policial com relação ao bandido carioca é proveniente do mais puro revanchismo, e vice-versa. Esse ciclo de violência e morte se renova dia a dia, com a repetição de atos de barbárie de ambos os lados, mas sua origem é culpa do aparato estatal", afirma o soldado Rafael, no livro.
Mas o soldado Rafael perde de vez a ingenuidade e começa a metamorfose de ser humano para monstro depois de cometer o primeiro assassinato a sangue-frio. A vítima é um rapaz que fora atropelado e estava caído no chão, se arrastando e implorando por socorro. Minutos depois, os policiais constatam que era verdadeira a versão de um popular que avisara que se tratava de um assaltante. O homem caído no chão fora atropelado por outro carro no exato momento em que tentava assaltar um motorista na Radial Oeste, na Zona Norte do Rio. Indefeso e todo arrebentado, ele balbuciava algo, como se pedisse ajuda. Mas o soldado Rafael decidiu matá-lo e depois simular um tiroteio, como acontece em muitos casos forjados de autos de resistência – o confronto armado com policiais. Em vez da pistola calibre 45 do assaltante, Rafael apresentou na delegacia uma pistola velha. Apesar da sensação de ter virado um monstro, com a execução sumária de um moribundo, ele vendeu a arma e dividiu o dinheiro com o colega de farda.
No livro, Rodrigo relata como vendeu também um fuzil AK-47 apreendido após confronto com traficantes do Morro do Borel, na Tijuca. Nesse tiroteio, dois bandidos foram fuzilados, depois de reagirem à patrulha de Rodrigo. O comprador foi um chefe de milícia. O matador do grupo, também conhecido como "quebrador", era um ex-PM, colega de turma de Rodrigo. Apesar de afirmar ter recusado convite para integrar aquela quadrilha, Rodrigo conta também como participou de ação da milícia contra um grupo de traficantes, cujo chefe foi degolado por um homem especialmente encarregado da ação, numa invasão minuciosamente planejada pelos milicianos. A ideia era mandar um recado aos traficantes: desistam desse território. Essa operação clandestina numa favela do Rio foi fruto de delação da namorada do bandido, cansada de humilhações e agressões. A mulata sestrosa tinha tudo do bom e do melhor na favela, mas o traficante não manifestava qualquer respeito por ela. Acabou sendo remunerado com a traição.
Além do cheiro de pólvora produzido pelos relatos sem firulas, o livro “Como nascem os monstros” poderia funcionar como uma espécie de manual da corrupção na Polícia Militar do Rio. Em nove meses, Rodrigo escreveu o livro de 606 páginas, que chamou de romance não ficcional. Ele garante que, tirando um ou outro personagem ou características criadas para esconder os personagens com os quais conviveu no dia a dia da PM, é tudo verdade. O livro destrincha o esquema de corrupção que depende também de alguém disposto a corromper o policial, seja um motorista pego sem habilitação, um usuário de drogas detido logo após sair da boca de fumo ou um chefão do tráfico vítima de um sequestro planejado por uma rara sociedade entre policiais civis e militares. A pessoa é pega em flagrante e parte para o "desenrolo", que na gíria do submundo significa a forma de se livrar de uma situação incômoda.
“O PM só vale o mal que pode causar” – escreve o soldado Rafael, que começou a carreira extorquindo o produto do roubo praticado por pivetes e gangues de bicicleta e chegou a participar do sequestro de um dos chefões do tráfico, que chamou de Rufinol e tem tudo para ser Rogério Rios Mosqueira, o Roupinol. Procedente de Macaé, era um dos maiores fornecedores de drogas do Rio e dominou o Complexo de São Carlos, no Estácio. Foi um dos primeiros no Rio a montar pequenos laboratórios de refino de cocaína, o que mostra que tinha contatos que trazem a pasta-base da droga diretamente da Bolívia e da Colômbia. Aliado de Nem da Rocinha, Roupinol foi morto em cerco da Polícia Federal, em março de 2010.
O sequestro de Roupinol foi planejado a partir de informações dadas por um X-9 (informante), com quem os policiais dividiam o dinheiro arrecadado em operações clandestinas de combate ao tráfico, e mais tarde se tornou justamente a denunciante dos crimes que levaram o soldado Rodrigo à prisão.
– Dentre todos os crimes que podem ser praticados quando se está com a farda da PM, o sequestro é, sem dúvida, um dos mais maravilhosos – conta Rafael, o alter-ego do ex-PM Rodrigo Nogueira.
O livro explica que o bandido sequestrado pode ficar horas dentro de um carro da polícia, ou até mesmo num Destacamento de Policiamento Ostensivo (DPO), o avô da UPP. No caso de os policiais bandidos serem surpreendidos pela corregedoria, eles podem alegar que não havia sequestro algum e que, na verdade, a pessoa detida estava prestes a ser conduzida para a delegacia de polícia. Só que a quadrilha que sequestrou o traficante não conseguiu comprar todo mundo, a história acabou vazando e os envolvidos foram sendo de alguma forma punidos, um a um.
Quando não conseguiam sequestrar um chefão, policiais corruptos cobravam propinas do tráfico, pagas semanalmente, diretamente aos agentes fardados e em carros da polícia, em plena luz do dia.
– Depois de comprar um policial, o bandido se sente um pouco dono dele – diz o soldado Rafael, demonstrando rara consciência das consequências da corrupção para a atividade policial.
Segundo Rodrigo, alguns policiais ficam tão submissos ao dinheiro do tráfico que no batalhão de Bangu, nos anos 1990, era comum um famoso traficante desfilar pelas ruas da Vila Vintém fardado e a bordo de uma das recém-chegadas blazer da PM. No São Carlos, os policiais tinham que subir a ladeira com calça arregaçada até a altura dos joelhos, com o fuzil cruzado nas costas, para mostrar que estavam arregados. Até um blindado, o famoso caveirão, pode ser usado como arma de coação na hora de determinar arregos a serem pagos, diz Rafael.
Numa das histórias, ele conta como o Grupo de Apoio Tático (GAT) do qual fazia parte invadiu uma favela, dominou o local onde era feita a embalagem da droga e torturou barbaramente, com crueldade ímpar, dois traficantes desarmados. Eles foram executados sumariamente depois que se percebeu que não tinham informações que levassem aos chefes da quadrilha.
As torturas e execuções são descritas em detalhes, assim como as medidas tomadas para se minimizar os riscos de uma perícia, por exemplo, constatar que as mortes não foram em confronto. Na entrevista, o ex-PM Rodrigo confessa que raramente os policiais que liberam bandidos perigosos ou vendem armas para traficantes avaliam o mal que estão causando à sociedade:
– O policial que comete esse tipo de crime não pensa nisso. Só o que importa é o lucro. É mais um sintoma da deformidade moral adquirida, quando tudo se torna banal, explicável, lícito – diz Rodrigo, que nega ter vendido armas para traficantes ou colocado em risco inocentes, com a libertação de bandidos.
No livro, entretanto, relata a história de um assaltante que estava na porta de um banco, pronto para fazer uma “saidinha de banco”, quando o PM Rafael o surpreendeu. Em vez de levá-lo preso, negociou e vendeu sua liberdade. Deixou, portanto, solto um tipo de criminoso frequentemente envolvido em latrocínio, roubo seguido de morte.
Embora não detalhe todos os casos, Rodrigo revela no livro como o esquema de corrupção parece estar mesmo entranhado em cada setor de um batalhão da PM. O cenário da roubalheira é a Tijuca, bairro de classe média, na Zona Norte da cidade. Ele trabalhou no 6º BPM (Tijuca) e mostra a estrutura que é montada para achacar cidadãos, comerciantes, suspeitos e criminosos. Uma simples verificação de documento pode dar início a um processo que se torna vantajoso para um policial que decide complementar a renda às custas de propina.
Segundo Rafael relata, tudo acontece com a cumplicidade e até o estímulo de oficiais da unidade, que colocam os subordinados em atividades estratégicas para a coleta do dinheiro. Em muitos casos, o serviço tem uma taxa fixa e periódica, cobrada pelo oficial, que não quer nem saber como o subordinado vai pagar o que foi combinado. É o trato que garante a pecúnia extra e mantém o subordinado no lugar determinado para conseguir o faturamento.
– Cansei de dar dinheiro na mão de major, capitão, tenente. Até para trabalhar em lugar melhor tem que pagar, senão o PM fica baseado a noite toda lá na Conchinchina. E os coronéis pegam dinheiro de tudo quanto é lugar. Tudo no batalhão gira em torno dele. É uma sujeirada sem tamanho, chega a dar nojo – afirma Rodrigo.
A rádio-patrulha é um dos serviços mais cobiçados pelos policiais porque é um dos poucos em que "não é o polícia que corre atrás do dinheiro, mas é o dinheiro que vem até o polícia". São os "ratrulheiros", como diz Rafael. Ele atribui a vantagem obtida pelos policiais corruptos "à sempiterna tendência do carioca em querer se dar bem", a velha Lei de Gérson.
– Se um PM exige dinheiro por conta de uma infração de trânsito que não existe, ou ele é burro ou maluco – diz Rodrigo, acrescentando que jamais conheceu algum PM que cobrasse propina de alguém que estivesse dentro da lei.
Com os estabelecimentos comerciais, uma rádio-patrulha pode conseguir bons acordos para estar lá na hora do fechamento – os “fechos”, que nada mais é do que o fornecimento de segurança particular com o aparato estatal. Já as rondas escolar e bancária são coordenadas pelo comando do batalhão, de acordo com seus próprios interesses. Mesmo no caso de atendimento a mortes naturais, os PMs, a pretexto de orientar a família do morto, fazem acertos para favorecer a funerária que vai lhe garantir a “cerveja”.
No serviço de motocicleta, Rafael e um sargento veterano tomaram muita propina de motoristas infratores, até que um dia tentaram extorquir dinheiro de um amigo do chefe do serviço. Aí o negócio babou. Rafael lembra que o sargento era bem-humorado. Quando o motorista infrator lhe oferecia um “café” para fazer vista grossa a alguma infração, o sargento dizia que só tomava o Kopi Luwak, um australiano que custa mil dólares o quilo. Indagado o que acha da situação com a Guarda Municipal cuidando do trânsito, Rodrigo diz que "melhorou, mas ainda não é ideal".
– Existem, sim, diversos casos de corrupção envolvendo GM, porém está sendo como na época do BPTran (Batalhão de Polícia de Trânsito). No começo, está todo mundo satisfeito, mas uma hora a merda vai feder. Pode esperar – afirma o ex-PM.
No Grupo de Ação Tática (GAT), uma minitropa de elite do batalhão, conheceu policiais que estão sempre dispostos a combater o crime visando principalmente os próprios bolsos. O destemor deles tem uma função objetiva: atuar em operações clandestinas, como a que invadiu o Morro dos Macacos pela mata e fuzilou sem anúncio um grupo de traficantes que estava de plantão na boca. O líder do grupo era um sargento ferrabrás.
Certa vez, ele próprio foi se vingar de um desafeto e, sem querer, eliminou também a criança que acompanhava o homem, num carro. Ficou muito tempo assombrado por esse pequeno fantasma. Mais tarde foi executado por assaltantes na Avenida Dom Hélder Câmara, diante de toda a família, na volta do jantar em que comemorara sua aposentadoria da PM. Os criminosos desconfiaram de que ele era policial.
Ainda no 6º BPM, o soldado Rafael conta como funcionava também o esquema do "morrinho", um dos mais bem organizados planos de achaque a usuários de drogas da cidade de que se tem notícia. O livro conta que teve muito policial que construiu sua casa com o dinheiro extorquido de dependentes químicos naquele golpe. Os policiais montavam uma "campana" (vigilância), numa área vizinha ao Morro dos Macaos, em Vila Isabel, de onde podiam observar, a uma distância segura, toda a movimentação na boca de fumo do Morro da Mangueira, uma espécie de "drive-thru" do tráfico. Segundo Rodrigo, frequentavam o local celebridades, pagodeiros, advogados, "playboys", médicos e até mesmo policiais Ali escolhiam os usuários de drogas que deixavam a favela em carros importados e acionavam outra dupla de policiais que estava num ponto estratégico. Um dos casos que mais rendeu aos achacadores, contado em 12 páginas do livro, foi o de um empresário norueguês, com negócios no Rio, acompanhado de uma loura, advogada, que pagou lição de moral para os PMs até que se descobriu o que o estrangeiro guardava na cueca: papelotes de cocaína. Num só "bote" os PMs arrecadaram R$ 10 mil mais US$ 2.500. O dinheiro foi pago no belo apartamento da advogada, em São Conrado, onde os policiais assaltaram até a geladeira da vítima.
– Policial tem que ganhar bem. Não para enriquecer, mas para poder pagar uma faculdade, ou a escola dos filhos; as prestações de um carro e o financiamento de uma casa. É claro que, não importa o valor do salário, sempre haverá alguém propenso à corrupção – nossos queridos políticos estão aí e não me deixam mentir. Entretanto, acho difícil encontrar um policial que se arriscaria a perder a farda e um salário de R$ 4 mil por um amarrado de queijo apenas, ou por uma bacia com peixes, como já vi acontecer. Com efeito, se a carreira oferecesse um salário razoável, atrairia uma parcela mais selecionada de interessados no concurso, o que elevaria o nível cultural e social dos candidatos – afirma Rodrigo.
Mas o policial ganha mal (R$ 1.200 o salário inicial) e muitas vezes acaba vendo nas situações irregulares oportunidades de complementar a renda com o menor esforço possível. Essa postura, por sua vez, aumenta a desconfiança da população nos agentes da lei, o que foi verificado semana passada em pesquisas do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O ex-PM Rodrigo Nogueira concorda que os cidadãos cada vez desconfiam mais dos policiais militares:
– O carioca, por vezes, tem mais medo de encontrar uma viatura da PM, no breu da madrugada, do que um bonde armado de traficantes indo de um baile a outro. A visão que a população tem da PMERJ está tão desgastada que é preciso um reset. Foram anos de abandono, negligência, de chacinas como a do Borel, de Vigário Geral, da Candelária, da Baixada. Em outros estados, a aceitação da população é maior, muito embora o modelo de militarização das polícias esteja sendo cada vez mais questionado. Contudo, o Rio não encontra paralelo quando o assunto é violência policial. Todos são culpados, mas sobretudo as nossas autoridades políticas, que perdem tempo ocupadas nos seus cambalachos e se esquecem (ou não estão nem aí!) de quanta gente está morrendo nessa guerra miserável, que nunca termina e não tem vencedores – só perdedores.
A recíproca também é verdadeira, observa Rodrigo: "A população se torna o inimigo ao homiziar o traficante, dar guarida ao "157" e bater palmas ou dar de ombros quando um PM é estralhaçado pelas balas dos bandidos. É um círculo vicioso: o cidadão não confia no PM e o PM não confia no cidadão".
O ex-PM critica também a militarização da força e a disparidade entre os processos de expulsão de um praça e de um oficial. No caso do praça, ele lembra, a decisão é rápida, depois que o policial é submetido a um conselho de disciplina. "É virtualmente impossível que o oficial seja expulso", observa. Com mais liberdade para agir, são os oficiais que incentivam os comandados a extorquirem mais e a matar mais, conclui Rodrigo.
"Enquanto a Academia de Oficiais continuar formando líderes desqualificados, pretensiosos e, acima de tudo, aproveitadores da ignorância dos praças, o ciclo de roubalheira continuará se renovando um dia após o outro. Assassinos obedecendo a assassinos, ladrões prestando continência a ladrões; e depois, com a mais deslavada demagogia, o comandante-geral vem crucificar um ou outro policial preso por cometer algum crime de repercussão na mídia!", escreve Rafael.
No livro, o soldado Rafael não deixa pedra sobre pedra da corporação. “Ingenuidade pensar que no Bope não tem ladrão. Apenas o objetivo e a forma de escambo variam, pois enquanto o barriga azul cata tudo que estiver pela frente, o caveira corre atrás da mochila (que leva o dinheiro das bocas) e dos bicos (fuzis)”, escreve.
Apesar de descrever detalhes e histórias de policiais com quem trabalhou – que podem vir a ser reconhecidos por ex-colegas – Rodrigo diz que não há receio de que alguém seja descoberto:
– Procurar indícios de crime em minha obra seria como procurar uma machadinha num quarto fedorento de São Petersburgo ou um pilão de cobre esquecido num bolso de algum capote velho – ironiza [numa clara referência a dois romances de Dostoiévski: Crime e Castigo e Os Irmãos Karamazov].
Com estilo dos melhores thrillers de suspense, Rodrigo garante que não se autocensurou em nenhum momento, mas mantém sob sigilo os nomes dos personagens da trama.
– É óbvio que para tratar de assuntos tão delicados como os de meu livro há que se usar o bom senso, até porque existem outras pessoas envolvidas e não é conveniente arrolá-las em dinâmicas e situações que gerem embaraço. Não diria que me autocensurei, pois contei tudo. Entretanto, sempre cuidando para preservar terceiros, e esforçando-me para manter a integridade da história. Onde isso não foi possível, o romancista entrou em ação e deu jeito no problema – conta o ex-PM e escritor.
Como conhece bem o sistema ao qual esteve ligado durante cinco anos, Rodrigo pode mesmo salvar a pele com a decisão de proteger nomes e locais exatos das histórias contadas no livro. Leitor voraz que diz não apreciar literatura policial, ele conta que desistiu de ler "Tropa de Elite", o livro que transformou os integrantes do Bope em heróis, e "Sangue Azul", outro livro sobre a corrupção da PM do Rio. "O texto muito pobre e a inverossimilhança me desanimaram", critica.
Com uma citação de Nietzche – “Quem conhece monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E se você olhar longamente para um abismo, ele também olha para dentro de você” –, o livro tem referências literárias difíceis de se achar no texto de um ex-PM que conseguiu entrar para a faculdade de direito com o dinheiro ilegal, já que seu salário era de apenas R$ 750,00. Ele cita, entre outros, H.G. Wells, Mario Puzzo e Jean-Paul Sartre. Aos 9 anos de idade, venceu um concurso de redação, cujo prêmio foi uma coleção luxuosa das principais obras de Monteiro Lobato. Mais tarde, na Marinha, onde quase chegou a ser cabo, recebeu o prêmio de melhor poesia num concurso, o que por muito tempo foi motivo de piada no quartel.
– Seria impossível eu escrever sem antes ter tido contato com a literatura de verdade, com os textos que são a base do meu pensamento. Os livros são, sem dúvida, instrumentos muito mais poderosos que qualquer fuzil já produzido – filosofa.
Veja a repercussão dessa matéria em:www.oglobo.com.br/rio/ancelmo/reporterdecrime
Blog Repórter de Crime / Jorge Antonio Barros
Quem poderia imaginar que quatro PMs de uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) – cuja proposta é justamente a de levar segurança a áreas pobres – fossem capazes de torturar até a morte um inocente, com a cumplicidade dos superiores e a omissão de mais 21 policiais? Para qualquer pessoa que tenha conhecido a banda podre da PM, como aconteceu com Rodrigo Nogueira, carioca de 32 anos, o Caso Amarildo infelizmente não é exceção. Entre 2005 e 2009, o soldado Rodrigo usou a farda, o distintivo e as armas cedidas pela corporação para extorquir dinheiro de quem estivesse fora da lei ao cruzar seu caminho, torturar traficantes, negociar e vender a liberdade de perigosos assaltantes, julgar e condenar à morte criminosos e suspeitos de crimes, participar de ações da milícia e matar a sangue-frio, sem piedade. Pela primeira vez um ex-PM do Rio confessa publicamente ter cometido tamanhas atrocidades e revela como funciona o esquema que corrompe praticamente toda a cadeia hierárquica da corporação, do soldado ao coronel.
Para expiar sua culpa, Rodrigo criou um personagem, o sol-dado Rafael, o protagonista que narra em primeira pessoa "Como nascem os monstros – A história de um ex-soldado da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro" (Editora Topbooks), lançado mês passado. Qualquer semelhança com a realidade não é nenhuma coincidência. Depois que foi preso em novembro de 2009 na Unidade Prisional da PM – condenado por tentativa de homicídio e de extorsão – Rodrigo considerou uma missão revelar o sistema de uma das maiores corporações policiais do país, que está na berlinda por episódios como o de Amarildo ou por ter perdido o controle de manifestações que acontecem desde junho.
– Alguém precisava dar real entendimento ao que acontece dentro dos quartéis da PMERJ, quais são os fatores que transformam homens comuns, pais de família, em assassinos alucinados e sem remorso, e isso só seria possível através do prisma de quem viveu no inferno e que já não tinha mais nada a perder. Não escrevo para ser reconhecido ou festejado, mas sim para que o nível de podridão da PMERJ seja escancarado de vez e de uma maneira que não tenha mais volta, para que todos os leitores abram os olhos e percebam que não passamos todos de uma reles massa de manobra de interesses muito mais terríveis e obscuros, que todos dias vendem morte e insegurança, para poder pedir seu voto de novo daqui a quatro anos – afirma Rodrigo, em entrevista por carta, na qual não deixou de responder nenhuma das 42 perguntas.
Apesar de ter confessado vários crimes, o ex-PM Rodrigo Nogueira nega ter praticado justamente os crimes que o levaram a uma condenação total de 30 anos e oito meses de prisão, na esfera civil e militar. Ele foi condenado a partir do depoimento de uma vendedora ambulante, que acusou ele e um colega de terem tentado extorquir dinheiro dela e lhe dado um tiro no rosto, além de estuprá-la. O caso ganhou as páginas policiais em 2009. Por ironia, a mulher era a informante que havia ajudado o grupo de Rodrigo no plano de sequestro de um traficante, cuja liberdade custou R$ 250 mil, além de cinco fuzis.
– Não sei dizer especificamente quem foi o responsável pelo disparo que a atingiu, mas ela foi submetida a exame de corpo de delito que comprovou que ela não foi sofreu agressão sexual, como havia denunciado – defende-se o ex-PM, acrescentando que foi condenado por 4 votos a 3 e não quis fazer do livro "um plenário" para sua defesa.
Nascido e criado numa área pobre de Nova Iguaçu, Rodrigo cursou a Escola de Aprendizes Marinheiros de Santa Catarina, acreditando que ia participar de alguma guerra. Seu sonho era pegar em armas para defender a sociedade, e foi isso que acabou levando-o à Polícia Militar. O protagonista do livro inicia sua trajetória na PM como uma espécie de paladino da Justiça, realmente acreditando que iria "servir e proteger", como diz o slogan da corporação, copiado da polícias americanas.
Aos poucos, a convivência com colegas mais experientes, entregues à rotina de violência, o transforma no que ele acreditava ser um combatente urbano, estimulado pela retórica da guerra, na qual policiais viram soldados, e traficantes – e até moradores de favelas – seus inimigos mortais. Recebe então a senha para saquear os territórios conquistados, como despojos de guerra, e eliminar pessoas a seu próprio julgamento, contribuindo para o círculo vicioso de violência que impregna as ações da polícia nas grandes cidades do país.
– Rafael sente muito remorso pelos homicídios que cometeu, e isso fica bem claro na obra. É isso que mais me incomoda, tanto que a metamorfose só ocorre depois que ele mata a primeira vez – observa o ex-PM escritor.
Apesar de ter conhecido a corporação em 2005, Rodrigo conclui que foi a ditadura de 64 quem usou a PM, no combate à subversão, pois foi quando, segundo ele, a força aprendeu a torturar, sequestrar, "embuchar" (forjar provas) e até matar com extrema eficiência e funcionalidade. Com a volta da democracia, diz ele, esses poderes deveriam ter sido extintos. "Mas nenhum general foi aos batalhões, nenhum curso de reciclagem foi formulado, nada. Enquanto as tropas do Exército recolhiam-se aos quartéis, quem é que continuou nas ruas? A PM. Tudo foi jogado em cima de homens semianalfabetos, mal-pagos e mal-preparados", afirma no livro, num dos raros momentos em que tenta justificar os erros praticados pelos policiais.
Segundo Rodrigo, o ódio ao bandido vai sendo construído já no Curso de Formação e Aperfeiçoamento de Praças (CFAP), em Marechal Hermes. "A animosidade do policial com relação ao bandido carioca é proveniente do mais puro revanchismo, e vice-versa. Esse ciclo de violência e morte se renova dia a dia, com a repetição de atos de barbárie de ambos os lados, mas sua origem é culpa do aparato estatal", afirma o soldado Rafael, no livro.
Mas o soldado Rafael perde de vez a ingenuidade e começa a metamorfose de ser humano para monstro depois de cometer o primeiro assassinato a sangue-frio. A vítima é um rapaz que fora atropelado e estava caído no chão, se arrastando e implorando por socorro. Minutos depois, os policiais constatam que era verdadeira a versão de um popular que avisara que se tratava de um assaltante. O homem caído no chão fora atropelado por outro carro no exato momento em que tentava assaltar um motorista na Radial Oeste, na Zona Norte do Rio. Indefeso e todo arrebentado, ele balbuciava algo, como se pedisse ajuda. Mas o soldado Rafael decidiu matá-lo e depois simular um tiroteio, como acontece em muitos casos forjados de autos de resistência – o confronto armado com policiais. Em vez da pistola calibre 45 do assaltante, Rafael apresentou na delegacia uma pistola velha. Apesar da sensação de ter virado um monstro, com a execução sumária de um moribundo, ele vendeu a arma e dividiu o dinheiro com o colega de farda.
No livro, Rodrigo relata como vendeu também um fuzil AK-47 apreendido após confronto com traficantes do Morro do Borel, na Tijuca. Nesse tiroteio, dois bandidos foram fuzilados, depois de reagirem à patrulha de Rodrigo. O comprador foi um chefe de milícia. O matador do grupo, também conhecido como "quebrador", era um ex-PM, colega de turma de Rodrigo. Apesar de afirmar ter recusado convite para integrar aquela quadrilha, Rodrigo conta também como participou de ação da milícia contra um grupo de traficantes, cujo chefe foi degolado por um homem especialmente encarregado da ação, numa invasão minuciosamente planejada pelos milicianos. A ideia era mandar um recado aos traficantes: desistam desse território. Essa operação clandestina numa favela do Rio foi fruto de delação da namorada do bandido, cansada de humilhações e agressões. A mulata sestrosa tinha tudo do bom e do melhor na favela, mas o traficante não manifestava qualquer respeito por ela. Acabou sendo remunerado com a traição.
Além do cheiro de pólvora produzido pelos relatos sem firulas, o livro “Como nascem os monstros” poderia funcionar como uma espécie de manual da corrupção na Polícia Militar do Rio. Em nove meses, Rodrigo escreveu o livro de 606 páginas, que chamou de romance não ficcional. Ele garante que, tirando um ou outro personagem ou características criadas para esconder os personagens com os quais conviveu no dia a dia da PM, é tudo verdade. O livro destrincha o esquema de corrupção que depende também de alguém disposto a corromper o policial, seja um motorista pego sem habilitação, um usuário de drogas detido logo após sair da boca de fumo ou um chefão do tráfico vítima de um sequestro planejado por uma rara sociedade entre policiais civis e militares. A pessoa é pega em flagrante e parte para o "desenrolo", que na gíria do submundo significa a forma de se livrar de uma situação incômoda.
“O PM só vale o mal que pode causar” – escreve o soldado Rafael, que começou a carreira extorquindo o produto do roubo praticado por pivetes e gangues de bicicleta e chegou a participar do sequestro de um dos chefões do tráfico, que chamou de Rufinol e tem tudo para ser Rogério Rios Mosqueira, o Roupinol. Procedente de Macaé, era um dos maiores fornecedores de drogas do Rio e dominou o Complexo de São Carlos, no Estácio. Foi um dos primeiros no Rio a montar pequenos laboratórios de refino de cocaína, o que mostra que tinha contatos que trazem a pasta-base da droga diretamente da Bolívia e da Colômbia. Aliado de Nem da Rocinha, Roupinol foi morto em cerco da Polícia Federal, em março de 2010.
O sequestro de Roupinol foi planejado a partir de informações dadas por um X-9 (informante), com quem os policiais dividiam o dinheiro arrecadado em operações clandestinas de combate ao tráfico, e mais tarde se tornou justamente a denunciante dos crimes que levaram o soldado Rodrigo à prisão.
– Dentre todos os crimes que podem ser praticados quando se está com a farda da PM, o sequestro é, sem dúvida, um dos mais maravilhosos – conta Rafael, o alter-ego do ex-PM Rodrigo Nogueira.
O livro explica que o bandido sequestrado pode ficar horas dentro de um carro da polícia, ou até mesmo num Destacamento de Policiamento Ostensivo (DPO), o avô da UPP. No caso de os policiais bandidos serem surpreendidos pela corregedoria, eles podem alegar que não havia sequestro algum e que, na verdade, a pessoa detida estava prestes a ser conduzida para a delegacia de polícia. Só que a quadrilha que sequestrou o traficante não conseguiu comprar todo mundo, a história acabou vazando e os envolvidos foram sendo de alguma forma punidos, um a um.
Quando não conseguiam sequestrar um chefão, policiais corruptos cobravam propinas do tráfico, pagas semanalmente, diretamente aos agentes fardados e em carros da polícia, em plena luz do dia.
– Depois de comprar um policial, o bandido se sente um pouco dono dele – diz o soldado Rafael, demonstrando rara consciência das consequências da corrupção para a atividade policial.
Segundo Rodrigo, alguns policiais ficam tão submissos ao dinheiro do tráfico que no batalhão de Bangu, nos anos 1990, era comum um famoso traficante desfilar pelas ruas da Vila Vintém fardado e a bordo de uma das recém-chegadas blazer da PM. No São Carlos, os policiais tinham que subir a ladeira com calça arregaçada até a altura dos joelhos, com o fuzil cruzado nas costas, para mostrar que estavam arregados. Até um blindado, o famoso caveirão, pode ser usado como arma de coação na hora de determinar arregos a serem pagos, diz Rafael.
Numa das histórias, ele conta como o Grupo de Apoio Tático (GAT) do qual fazia parte invadiu uma favela, dominou o local onde era feita a embalagem da droga e torturou barbaramente, com crueldade ímpar, dois traficantes desarmados. Eles foram executados sumariamente depois que se percebeu que não tinham informações que levassem aos chefes da quadrilha.
As torturas e execuções são descritas em detalhes, assim como as medidas tomadas para se minimizar os riscos de uma perícia, por exemplo, constatar que as mortes não foram em confronto. Na entrevista, o ex-PM Rodrigo confessa que raramente os policiais que liberam bandidos perigosos ou vendem armas para traficantes avaliam o mal que estão causando à sociedade:
– O policial que comete esse tipo de crime não pensa nisso. Só o que importa é o lucro. É mais um sintoma da deformidade moral adquirida, quando tudo se torna banal, explicável, lícito – diz Rodrigo, que nega ter vendido armas para traficantes ou colocado em risco inocentes, com a libertação de bandidos.
No livro, entretanto, relata a história de um assaltante que estava na porta de um banco, pronto para fazer uma “saidinha de banco”, quando o PM Rafael o surpreendeu. Em vez de levá-lo preso, negociou e vendeu sua liberdade. Deixou, portanto, solto um tipo de criminoso frequentemente envolvido em latrocínio, roubo seguido de morte.
Embora não detalhe todos os casos, Rodrigo revela no livro como o esquema de corrupção parece estar mesmo entranhado em cada setor de um batalhão da PM. O cenário da roubalheira é a Tijuca, bairro de classe média, na Zona Norte da cidade. Ele trabalhou no 6º BPM (Tijuca) e mostra a estrutura que é montada para achacar cidadãos, comerciantes, suspeitos e criminosos. Uma simples verificação de documento pode dar início a um processo que se torna vantajoso para um policial que decide complementar a renda às custas de propina.
Segundo Rafael relata, tudo acontece com a cumplicidade e até o estímulo de oficiais da unidade, que colocam os subordinados em atividades estratégicas para a coleta do dinheiro. Em muitos casos, o serviço tem uma taxa fixa e periódica, cobrada pelo oficial, que não quer nem saber como o subordinado vai pagar o que foi combinado. É o trato que garante a pecúnia extra e mantém o subordinado no lugar determinado para conseguir o faturamento.
– Cansei de dar dinheiro na mão de major, capitão, tenente. Até para trabalhar em lugar melhor tem que pagar, senão o PM fica baseado a noite toda lá na Conchinchina. E os coronéis pegam dinheiro de tudo quanto é lugar. Tudo no batalhão gira em torno dele. É uma sujeirada sem tamanho, chega a dar nojo – afirma Rodrigo.
A rádio-patrulha é um dos serviços mais cobiçados pelos policiais porque é um dos poucos em que "não é o polícia que corre atrás do dinheiro, mas é o dinheiro que vem até o polícia". São os "ratrulheiros", como diz Rafael. Ele atribui a vantagem obtida pelos policiais corruptos "à sempiterna tendência do carioca em querer se dar bem", a velha Lei de Gérson.
– Se um PM exige dinheiro por conta de uma infração de trânsito que não existe, ou ele é burro ou maluco – diz Rodrigo, acrescentando que jamais conheceu algum PM que cobrasse propina de alguém que estivesse dentro da lei.
Com os estabelecimentos comerciais, uma rádio-patrulha pode conseguir bons acordos para estar lá na hora do fechamento – os “fechos”, que nada mais é do que o fornecimento de segurança particular com o aparato estatal. Já as rondas escolar e bancária são coordenadas pelo comando do batalhão, de acordo com seus próprios interesses. Mesmo no caso de atendimento a mortes naturais, os PMs, a pretexto de orientar a família do morto, fazem acertos para favorecer a funerária que vai lhe garantir a “cerveja”.
No serviço de motocicleta, Rafael e um sargento veterano tomaram muita propina de motoristas infratores, até que um dia tentaram extorquir dinheiro de um amigo do chefe do serviço. Aí o negócio babou. Rafael lembra que o sargento era bem-humorado. Quando o motorista infrator lhe oferecia um “café” para fazer vista grossa a alguma infração, o sargento dizia que só tomava o Kopi Luwak, um australiano que custa mil dólares o quilo. Indagado o que acha da situação com a Guarda Municipal cuidando do trânsito, Rodrigo diz que "melhorou, mas ainda não é ideal".
– Existem, sim, diversos casos de corrupção envolvendo GM, porém está sendo como na época do BPTran (Batalhão de Polícia de Trânsito). No começo, está todo mundo satisfeito, mas uma hora a merda vai feder. Pode esperar – afirma o ex-PM.
No Grupo de Ação Tática (GAT), uma minitropa de elite do batalhão, conheceu policiais que estão sempre dispostos a combater o crime visando principalmente os próprios bolsos. O destemor deles tem uma função objetiva: atuar em operações clandestinas, como a que invadiu o Morro dos Macacos pela mata e fuzilou sem anúncio um grupo de traficantes que estava de plantão na boca. O líder do grupo era um sargento ferrabrás.
Certa vez, ele próprio foi se vingar de um desafeto e, sem querer, eliminou também a criança que acompanhava o homem, num carro. Ficou muito tempo assombrado por esse pequeno fantasma. Mais tarde foi executado por assaltantes na Avenida Dom Hélder Câmara, diante de toda a família, na volta do jantar em que comemorara sua aposentadoria da PM. Os criminosos desconfiaram de que ele era policial.
Ainda no 6º BPM, o soldado Rafael conta como funcionava também o esquema do "morrinho", um dos mais bem organizados planos de achaque a usuários de drogas da cidade de que se tem notícia. O livro conta que teve muito policial que construiu sua casa com o dinheiro extorquido de dependentes químicos naquele golpe. Os policiais montavam uma "campana" (vigilância), numa área vizinha ao Morro dos Macaos, em Vila Isabel, de onde podiam observar, a uma distância segura, toda a movimentação na boca de fumo do Morro da Mangueira, uma espécie de "drive-thru" do tráfico. Segundo Rodrigo, frequentavam o local celebridades, pagodeiros, advogados, "playboys", médicos e até mesmo policiais Ali escolhiam os usuários de drogas que deixavam a favela em carros importados e acionavam outra dupla de policiais que estava num ponto estratégico. Um dos casos que mais rendeu aos achacadores, contado em 12 páginas do livro, foi o de um empresário norueguês, com negócios no Rio, acompanhado de uma loura, advogada, que pagou lição de moral para os PMs até que se descobriu o que o estrangeiro guardava na cueca: papelotes de cocaína. Num só "bote" os PMs arrecadaram R$ 10 mil mais US$ 2.500. O dinheiro foi pago no belo apartamento da advogada, em São Conrado, onde os policiais assaltaram até a geladeira da vítima.
– Policial tem que ganhar bem. Não para enriquecer, mas para poder pagar uma faculdade, ou a escola dos filhos; as prestações de um carro e o financiamento de uma casa. É claro que, não importa o valor do salário, sempre haverá alguém propenso à corrupção – nossos queridos políticos estão aí e não me deixam mentir. Entretanto, acho difícil encontrar um policial que se arriscaria a perder a farda e um salário de R$ 4 mil por um amarrado de queijo apenas, ou por uma bacia com peixes, como já vi acontecer. Com efeito, se a carreira oferecesse um salário razoável, atrairia uma parcela mais selecionada de interessados no concurso, o que elevaria o nível cultural e social dos candidatos – afirma Rodrigo.
Mas o policial ganha mal (R$ 1.200 o salário inicial) e muitas vezes acaba vendo nas situações irregulares oportunidades de complementar a renda com o menor esforço possível. Essa postura, por sua vez, aumenta a desconfiança da população nos agentes da lei, o que foi verificado semana passada em pesquisas do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O ex-PM Rodrigo Nogueira concorda que os cidadãos cada vez desconfiam mais dos policiais militares:
– O carioca, por vezes, tem mais medo de encontrar uma viatura da PM, no breu da madrugada, do que um bonde armado de traficantes indo de um baile a outro. A visão que a população tem da PMERJ está tão desgastada que é preciso um reset. Foram anos de abandono, negligência, de chacinas como a do Borel, de Vigário Geral, da Candelária, da Baixada. Em outros estados, a aceitação da população é maior, muito embora o modelo de militarização das polícias esteja sendo cada vez mais questionado. Contudo, o Rio não encontra paralelo quando o assunto é violência policial. Todos são culpados, mas sobretudo as nossas autoridades políticas, que perdem tempo ocupadas nos seus cambalachos e se esquecem (ou não estão nem aí!) de quanta gente está morrendo nessa guerra miserável, que nunca termina e não tem vencedores – só perdedores.
A recíproca também é verdadeira, observa Rodrigo: "A população se torna o inimigo ao homiziar o traficante, dar guarida ao "157" e bater palmas ou dar de ombros quando um PM é estralhaçado pelas balas dos bandidos. É um círculo vicioso: o cidadão não confia no PM e o PM não confia no cidadão".
O ex-PM critica também a militarização da força e a disparidade entre os processos de expulsão de um praça e de um oficial. No caso do praça, ele lembra, a decisão é rápida, depois que o policial é submetido a um conselho de disciplina. "É virtualmente impossível que o oficial seja expulso", observa. Com mais liberdade para agir, são os oficiais que incentivam os comandados a extorquirem mais e a matar mais, conclui Rodrigo.
"Enquanto a Academia de Oficiais continuar formando líderes desqualificados, pretensiosos e, acima de tudo, aproveitadores da ignorância dos praças, o ciclo de roubalheira continuará se renovando um dia após o outro. Assassinos obedecendo a assassinos, ladrões prestando continência a ladrões; e depois, com a mais deslavada demagogia, o comandante-geral vem crucificar um ou outro policial preso por cometer algum crime de repercussão na mídia!", escreve Rafael.
No livro, o soldado Rafael não deixa pedra sobre pedra da corporação. “Ingenuidade pensar que no Bope não tem ladrão. Apenas o objetivo e a forma de escambo variam, pois enquanto o barriga azul cata tudo que estiver pela frente, o caveira corre atrás da mochila (que leva o dinheiro das bocas) e dos bicos (fuzis)”, escreve.
Apesar de descrever detalhes e histórias de policiais com quem trabalhou – que podem vir a ser reconhecidos por ex-colegas – Rodrigo diz que não há receio de que alguém seja descoberto:
– Procurar indícios de crime em minha obra seria como procurar uma machadinha num quarto fedorento de São Petersburgo ou um pilão de cobre esquecido num bolso de algum capote velho – ironiza [numa clara referência a dois romances de Dostoiévski: Crime e Castigo e Os Irmãos Karamazov].
Com estilo dos melhores thrillers de suspense, Rodrigo garante que não se autocensurou em nenhum momento, mas mantém sob sigilo os nomes dos personagens da trama.
– É óbvio que para tratar de assuntos tão delicados como os de meu livro há que se usar o bom senso, até porque existem outras pessoas envolvidas e não é conveniente arrolá-las em dinâmicas e situações que gerem embaraço. Não diria que me autocensurei, pois contei tudo. Entretanto, sempre cuidando para preservar terceiros, e esforçando-me para manter a integridade da história. Onde isso não foi possível, o romancista entrou em ação e deu jeito no problema – conta o ex-PM e escritor.
Como conhece bem o sistema ao qual esteve ligado durante cinco anos, Rodrigo pode mesmo salvar a pele com a decisão de proteger nomes e locais exatos das histórias contadas no livro. Leitor voraz que diz não apreciar literatura policial, ele conta que desistiu de ler "Tropa de Elite", o livro que transformou os integrantes do Bope em heróis, e "Sangue Azul", outro livro sobre a corrupção da PM do Rio. "O texto muito pobre e a inverossimilhança me desanimaram", critica.
Com uma citação de Nietzche – “Quem conhece monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E se você olhar longamente para um abismo, ele também olha para dentro de você” –, o livro tem referências literárias difíceis de se achar no texto de um ex-PM que conseguiu entrar para a faculdade de direito com o dinheiro ilegal, já que seu salário era de apenas R$ 750,00. Ele cita, entre outros, H.G. Wells, Mario Puzzo e Jean-Paul Sartre. Aos 9 anos de idade, venceu um concurso de redação, cujo prêmio foi uma coleção luxuosa das principais obras de Monteiro Lobato. Mais tarde, na Marinha, onde quase chegou a ser cabo, recebeu o prêmio de melhor poesia num concurso, o que por muito tempo foi motivo de piada no quartel.
– Seria impossível eu escrever sem antes ter tido contato com a literatura de verdade, com os textos que são a base do meu pensamento. Os livros são, sem dúvida, instrumentos muito mais poderosos que qualquer fuzil já produzido – filosofa.
Veja a repercussão dessa matéria em:www.oglobo.com.br/rio/ancelmo/reporterdecrime
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