Vimos o Brasil na Câmara dos
Deputados
Assisti partes da sessão da
Câmara que aprovou a admissibilidade do processo de impeachment da Dilma. Tenho
lido críticas, chiações, resmungos e textos escritos aos gritos de ódio.
Também, o que desejavam? O Brasil é um país politicamente troncho - uma espécie
de reinado do fisiologismo. O brasileiro adora o fisiologismo, como venera o
jeitinho, a manobra, o trambique, maior ou menor. O brasileiro não aceita
regras, leis, normas civilizadas de convivência. O Congresso é, sem dúvida, um
retrato do Brasil – e os congressistas, dos brasileiros. Reparem, por exemplo,
que em todos os parlamentos, as Excelências permanecem em seus lugares e
respeitam quem está na tribuna. No Brasil, os parlamentares transformam as
sessões numa zorra total, num bloco carnavalesco.
Em “Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária”, de Nelson Rodrigues,
um burguesão (Werneck) quer comprar um marido para sua filha caçula, que foi
currada. Já comprou outro, de nome Peixoto, para a filha mais velha. O novo
candidato, Edgar, reluta em vender-se e arranca de si um comentário
desesperado: “Não sou Peixoto!” O burguesão ri alto: “Engano, meu caro. No
Brasil todo mundo é Peixoto”. Na plateia, o silencio é constrangedor.
Noutro momento, o mesmo burguesão, ante a insistente e angustiante recusa
de Edgar, entrega a ele um cheque de cinco milhões de cruzeiros (a peça é de
1962) e desafia: “É teu o dinheiro. Se você tem caráter, rasga o cheque. Tão
simples! Você tem ou não tem caráter? Então rasga e depois atira na minha cara
o papel picado.” Edgar, vencido, choroso, não rasgou o cheque.
O Velhote do Penedo, que já era leitor de Nelson Rodrigues, assistiu ao
espetáculo, duas semanas depois da sua estreia na Maison de France, Rio de
Janeiro. O Velhote saiu de lá acabrunhado, encucado, cheio de dúvidas. Dia
seguinte foi ver o pai de um amigo, que era dirigente do Partido Comunista
Brasileiro. Explicou suas angústias. Boris (vamos chamá-lo assim) me garantiu
que Nelson Rodrigues era reacionário, tinha uma visão equivocada do mundo e do
Brasil. Ousou um palavrão: um escroto! Pronto, o problema estava resolvido:
Nelson Rodrigues era um escroto – e ponto! Hoje talvez ele dissesse: Nelson
Rodrigues é um coxinha.
O tempo passou – vieram as vicissitudes, os sofrimentos, as angústias,
as alegrias, os amores, as venturas e desventuras, as derrotas da vida. Hoje,
54 anos passados, o Velhote releu a peça do Nelson Rodrigues – e mais uma vez
ficou angustiado. Com uma diferença: a vida ensinou ao Velhote que a peça de
Nelson Rodrigues (e as cenas citadas) vale bem mais que centenas de estudos
sociológicos, políticos e antropológicos que circulam por nossas bandas, cheios
de empáfia e incapacidade de explicar o Brasil e os brasileiros. Ao contrário
do que me dissera o Boris, Nelson não era um escroto! Era um arguto observador
do caráter do brasileiro.
Comecei falando da sessão da Câmara e do escândalo que causou, segundo
pude ler na mídia e no facebook. O Velhote, claro, considerou o espetáculo um
misto de filme de Buñuel e uma assembleia de farofeiros, embora, em alguns instantes,
a coisa tenha se tornado uma espécie de entrudo. O deputado Bolsonaro, por
exemplo, dedicou o seu voto a um torturador assassino; Jean Wyllys afirmou que
a sessão não passava de uma “farsa sexista”; não satisfeito, aproximou-se de
Bolsonaro, que o chamara de boiola, deu-lhe uma cusparada e saiu em desabalada
carreira, creio que temendo o revide.
Houve vivas aos pais, aos netos, aos irmãos, ao povo brasileiro, a
Marighela, a Deus, ao bairro em que mora, à cidade em que nasceu, ao dentista
que tratou do seu canino, aos netos. De tudo isso, o Velhote só não gostou foi
da cusparada (por nojo) e do elogio ao torturador (por ódio). Ofensa se responde
com porrada. O elogio ao torturador é crime e deve ser punido, no mínimo, com a
cassação do mandato. O Velhote já escreveu sobre isso.
Misturei a sessão da Câmara com Nelson Rodrigues para dizer que nos faltam
estudos sérios sobre o brasileiro, sobre o que Norbert Elias chamou “habitus”. O
brasileiro, ao longo da história, acumulou saberes, culturas e modos de agir
nada civilizados. O brasileiro não é um coitadinho.
Temos carência de estudos e análises que nos expliquem porque o
brasileiro (estou falando em tese) adora praticar pequenos delitos, como furar
fila, dar jeitinhos, subornar o guarda de trânsito, obter vantagens pessoais, mas
condena e quer a cabeça dos “outros” que trambicaram. O brasileiro gosta de
dizer que não suporta política, confessa (feliz) que é despolitizado e alienado,
que não se preocupa com o problema dos outros. É verdade. Mas não percebe que,
ao se afastar da política, abre espaço para muita gente ordinária, da esquerda
à direita. Ideologia não cura a safadeza.
Pouco antes de falecer, Antonio Callado acentuou, em entrevista, a
diferença entre o brasileiro e o vietnamita, entre um povo acomodado, folgado,
sempre propenso à bonança e à aceitação (o brasileiro) e um povo raquítico, pequenino,
mas que lutou e derrotou o exército francês e, depois, o exército mais armado
do mundo, o americano (o vietnamita).
Nelson Rodrigues foi fundo ao desenhar em suas peças e confissões o que
ele julgava ser o brasileiro, a alma do brasileiro. Vou voltar ao assunto.
Em tempo (1):
Alguém (não lembro o nome) escreveu que o Rio de Janeiro é uma cidade
politizada. Ora, o deputado federal mais votado no Rio foi o Jair Bolsonaro,
que recebeu 465 mil votos; Eduardo Campos recebeu 232 votos; 162 mil eleitores
votaram no Pedro Paulo, o Espancador. Há políticos propondo eleições gerais,
que, segundo pesquisas, poderão eleger o Lula. Não é uma coisa espantosa? O Rio
elegeu o Pezão, como muitos anos atrás, elegeu Moreira Franco, derrotando o
Darcy Ribeiro.
Em tempo (2):
Há uma delação premiada que promete informar ao distinto público (nós!)
nomes de jornalistas e blogueiros que recebem grana para defender o governo. Como
dizia o grande Stanislaw Ponte Preta, vai sair fumacinha.
Em tempo (3):
A cena dos banhistas, batendo bola, indiferentes aos dois cadáveres
mortos devido à incompetência da Prefeitura do Rio ao construir uma simples ciclovia,
é autoexplicativa. Dolorosamente autoexplicativa.
Em tempo (4):
Lembrei-me de outra cena do Nelson Rodrigues. Velório de um sujeito. A
mulher, em prantos, agarrava-se ao caixão e pedia: “Quero ir junto! Quero ir
junto! Quero morrer! Quero morrer com o meu amor!” Uma tia gorda e patusca
aproximou-se dela com um copo d’água: “Beba, minha filha, beba, que faz bem”. A
viúva parou de chorar, olhou o copo d’água e perguntou: “É filtrada?”
Em tempo (5):
O ator José de Abreu cuspiu num casal – e vangloriou-se: “cuspi no
marido e na mulher, pois é assim que os fascistas devem ser tratados”. É impressionante
a capacidade que algumas pessoas têm de ofender as pessoas, rotulando-as de
fascistas, coxinhas e direitistas pelo simples fato de não pensarem como ele,
embora eu não creia que Abreu saiba pensar.
E convenhamos: usar o cuspe para provar que é machão e de esquerda é de
uma pobreza sem nome. Virou moda agora? Ser de esquerda é sair por aí cuspindo
nas pessoas? Eu nunca cuspi em ninguém. Aliás, todos sabem que os torturadores
da ditadura tanto batiam, supliciavam e davam choques como cuspiam e urinavam
nos presos políticos como forma de desmoralizar a vítima.
Em tempo (6):
Em 1958, quando o escrete brasileiro foi disputar a Copa do Mundo da Suécia,
os jornais locais preveniram: “Cuidado, não fiquem muito perto dos brasileiros.
Eles têm o hábito de cuspir”. Essa história foi contada pelo maior cronista
esportivo do Brasil, Mário Filho, irmão do Nelson Rodrigues.
Em tempo (7):
Quando o deputado Tiririca (mais de um milhão de votos em São Paulo!)
votou a favor do impeachment da Dilma, Lula imprecou: “Ele? Mas ele esteve aqui
e nós acertamos que ele ia votar contra!” Interessante. Acertaram o quê, como,
de que maneira? Só no papo?
Amigo Ronaldo, você está como um bom vinho de guarda: quanto mais velho, melhor nos seus comentários, nas suas deduções. Parabéns!
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