Maquiavel
explica. Explica?
Escrevi
várias vezes que os petistas desmoralizaram as esquerdas – e estas, hoje, estão
sem discurso, pois a tábua de salvação em que se agarraram é o velho discurso
dos anos 1950 e 1960. As esquerdas não sabem o que dizer à sociedade. O recente
racha no PSTU é prova da falta de rumo das esquerdas. É velha a tradição das
esquerdas brasileiras se fragmentarem em momentos de crise, embora tais fragmentações
não produzam nada de novo, apenas ecoam o velho.
O PT
demonstrou que não estava preparado para o exercício do poder. O desafio
histórico de assumir o cargo maior da República foi demais para o núcleo
central do PT, que se afundou na incompetência, na falta de traquejo e, pior ainda,
na corrupção generalizada. Nelson Rodrigues, numa de suas peças, diz que há
sempre um momento em que as famílias apodrecem; no caso, a corrupção sistêmica
apodreceu o PT.
Faltou ao PT
o que Maquiavel chamava de “virtú”. Virtú seria, em palavras simples, capacidade
de governança (capacidade de atender as necessidades dos “súditos”) e ficar
longe da corrupção, que Maquiavel condenava rigorosamente. O príncipe (ou seja,
aquele que está no poder) deve, sempre, dar bons exemplos aos súditos (ou seja,
aos governados) – eis um dos ensinamentos básicos do maquiavelismo. “Nada torna
um príncipe mais estimado do que ele realizar grandes empreendimentos e dar
altos exemplos através de sua conduta” (Maquiavel, cap. XXI).
A “fortuna”
(outra expressão cunhada por Maquiavel) é a “sorte”, as circunstâncias que permitem
ao príncipe exercer a “virtú”. A fortuna fornece ou proporciona as condições da
ação, as possibilidades de ação em prol dos súditos. O homem de virtú é
justamente aquele que sabe extrair dos momentos propícios (fornecidos pela
fortuna) as orientações certas para as iniciativas. É possível supor que o primeiro
governo Lula tenha sido guiado (ou beneficiado) pela fortuna, a despeito da ausência
de virtú do nosso grande líder. No segundo governo, a fortuna do governo Lula começou
a escorrer pelo ralo. A era Dilma, então, foi um desastre completo: faltou-lhe
fortuna e virtú. Chegamos, enfim, ao caos, ao elogio à mandioca e à defesa ao
estoque do vento.
Ao PT faltou capacidade
política e estratégica (virtú) para aproveitar as circunstâncias que desfrutou
(principalmente nos cinco, seis primeiros anos da sua era) e realizar as
reformas políticas e econômicas que o Brasil exige. Jacques Wagner, figurão do
PT, afirmou que “nunca imaginamos que estávamos nos aliando a um grupo que se
revelou o que há de mais conservador na política brasileira”. Não é possível
que a liderança petista fosse assim tão ingênua, como faz supor a frase de
Wagner. A verdade é que o PT pensou que exerceria o poder “a despeito” do PMDB
(e o “usaria” a seu bel-prazer, mediante cargos e benesses), o que evidencia
autossuficiência e absoluta carência de virtú. Fazer política supondo ser mais
esperto que os demais, é estupidez.
O PT chora
hoje sobre o leite que derramou na doce ilusão de que o estava sorvendo. O
leite, no caso, não é só o seu governo, mas a ideia de esquerda, que está na
UTI, sem perspectivas quaisquer de alta ou, na pior das hipóteses, de cura.
Temos agora um governo do PMDB – azar o nosso? Mas não vou ficar aqui lamentando
o fato nem exigindo do PMDB, de um governo do PMDB, o que ele não é nem pode
ser. O PT gerou 12 milhões de desempregados, além de inflação alta, déficits crônicos,
e por aí vai. O PMDB, claro, vai tentar resolver essas questões, mas ao seu
modo. Como no samba, de uma coisa eu tenho certeza: o modo petista de governar
não deu certo. Acabou. O cantor Jorge Goulart, velho quadro do Partidão, me
disse uma frase exemplar: a esquerda nunca aceita a sua derrota.
Outro dia,
conversando com um amigo, ele não economizava acusações e xingos contra Temer,
repetindo o discurso de sempre (digo: do PT e do PCdoB), como se os treze anos
de governo do PT tivesse sido propriamente de esquerda ou tivesse realizado
algum tipo de mudança no país. Claro, esse amigo teve o bom senso (talvez o bom
gosto) de não citar nem a Chauí nem o Sader ou o Janine. Mas o discurso desse
amigo – eu disse a ele – é velho, saudosista, não cola mais. Afirmei que a
esquerda – melhor: aqueles que ainda acreditam no socialismo democrático, pluripartidário
– deveria buscar um discurso mais articulado com os tempos atuais. Não precisamos
excluir Marx, os clássicos, mas precisamos estudá-los em face do mundo atual.
Em 1848, Marx e Engels escreveram sobre a globalização, que eles chamavam de
internacionalização. Mas a esquerda brasileira ainda faz o discurso do tempo da
guerra fria, um discurso dicotômico, que sequer reconhece a globalização como
um fato real. Em tempo de internet a esquerda ainda usa máquina de escrever.
É evidente
que discordar da esquerda envelhecida não significa descambar para a direita.
Aliás, não vejo o mundo dividido mais em direita e esquerda, polarizado, mas em
políticas que reduzam as disparidades e ampliem os níveis de oferta das políticas
sociais, como saúde, educação, mobilidade urbana, cultura, por aí. Classes
sociais ainda existem, mas em sociedades complexas elas se interligaram,
havendo entre as pontas extremas (os 10% mais ricos e os 10% miseráveis) uma
enorme variedade de grupos e camadas sociais. Tal complexidade reflete-se também
na educação, na saúde (índices de sanidade), cultura. A nossa missão é uma só:
podar as duas pontas. Tornar as distâncias sociais política e moralmente
aceitáveis.
Precisamos
pensar a complexidade social e procurar elaborar a partir daí um discurso de esquerda
que seja moderno, aberto, não restritivo. A esquerda brasileira, em geral,
envelheceu, mas não se deu conta disso. Eu, de minha parte, aviso: não vou
ficar aqui, em nome de valores ultrapassados, patrulhando o governo Temer, embora
não o apoie e lamente que tenhamos chegado a ele. Ele vai mexer na previdência?
Vai. Mas Lula e Dilma mexeram, ao criarem descontos dos aposentados e o fator
previdenciário. Temer vai criar a CPMF? Vai. Mas Dilma também queria criar esse
imposto. Temer vai privatizar? Vai. Mas Lula e Dilma também privatizaram,
embora utilizando outros nomes. Nada de novo no front.
A culpa pela
existência do governo Temer é do núcleo dirigente do PT: primeiro, porque se
aliou ao PMDB; segundo, porque se lambuzou na incompetência e na corrupção
quando tinha a faca e o queijo na mão para fazer reformas em benefício do país.
Bem, esse
debate vai longe.