Não
sou engenheiro. Não sou arquiteto. Não sou especialista em meio ambiente. Não
sou, sequer, “especialista em situações de risco” ou “especialista em
gerenciamento de crise”, titulações adotadas por acadêmicos para falar sobre a
tragédia de Brumadinho.
Sou,
como todos sabem, um observador desencantado da vida – e é nessa condição que
vou dizer o que penso sobre o ocorrido naquela cidade mineira. Antes, porém,
conto uma história.
Juscelino
Kubitschek foi eleito para cumprir um mandato de cinco anos. Na época, não
havia reeleição. JK pretendia construir Brasília no seu primeiro mandato.
Assim, logo que foi empossado, em 31 de janeiro de 1956, o presidente
encaminhou ao Congresso o projeto de lei de construção da nova capital,
definindo prazos, custos, fontes de financiamento. Antes de virar lei, o projeto
rodou no Congresso durante dois anos, o que significa que Brasília foi
construída (precariamente) e inaugurada (com pompa) nos três anos finais do
mandato presidencial. JK temia que o seu sucessor reduzisse a velocidade da
obra ou simplesmente a paralisasse, como prometia Jânio Quadros, que, a partir
de 1961, viria a ser seu substituto no cargo. JQ odiava Brasília (e desprezava
JK, diga-se), a respeito da qual usava os mais variados impropérios e xingos,
entre os quais um que usou ao renunciar: “cidade maldita”. JK concluiu que era
preciso correr – e criar o chamado fato consumado, diante do qual nada poderia
ser feito. Estive em Brasília em 1959 – e fiquei impressionado com duas coisas:
a poeira e o fato de que a cidade não dormia.
Resido
em Brasília há 39 anos – e quando aqui cheguei a cidade tinha 19 anos e não era
nem sombra do que é hoje. A Asa Norte, bairro onde moro, tinha pouquíssimas
construções. Residi numa quadra, a 316, que era um verdadeiro pântano nos meses
de chuva e um Saara nos meses de seca. Brasília, que tinha sido inaugurada em
1961 era ainda uma cidade inacabada, pois suas obras não eram mais tocadas no
ritmo dos tempos de JK. Eu vinha do Rio e de São Paulo (onde morei oito anos) –
e, em tais condições, achei Brasília um horror: passei dez anos para me
acostumar com a vida na capital brasileira. Hoje, vivo bem em Brasília, apesar
de que, se eu pudesse, estaria vivendo no Penedo, cidade alagoana.
A
construção apressada de Brasília e a falta de manutenção ao longo do tempo criaram
enormes problemas, que hoje, 2019, estão pondo a cabeça de fora. Obras feitas
de supetão é a melhor forma de vê-las se deteriorar no curto e médio prazos.
Vimos recentemente uma ponte do Eixo principal de Brasília desabar devido a
defeitos de construção, falta de gestão e conservação e fluxo excessivo de
veículos. Há quem diga que outros problemas existem em muitos outros trechos do
Eixo. Será? Saberemos quando houver outros desabamentos.
Brasília
foi construída sob a égide de alguns equívocos políticos, um deles foi a
rapidez, ditada por um jogo político mesquinho: JK queria se candidatar
novamente em 1965 e Brasília seria o seu porta-estandarte eleitoral. Outro foi
o projeto fundado em preceitos ideológicos. A Praça dos Três Poderes é um bom
exemplo. Inspirada na Praça Vermelha (Moscou) e na Praça da Paz Celestial
(Pequim), a Praça dos Três Poderes é um imenso quadrilátero de cimento e pedra,
sem uma só árvore, sem uma só sombra, onde ninguém pode ir sem ter a impressão
de estar num forno micro-onda. Não nego a beleza arquitetônica de Brasília, mas
discuto muito a funcionalidade da cidade.
Pensava-se
que Brasília, no auge, teria uma população máxima de 450 mil habitantes; hoje,
porém, ela tem mais de 2 milhões. Se Brasília foi construída para ter uma
população cinco vezes menor que a atual, conclui-se que a cidade está subdimensionada
em ruas (extensão e largura), praças, avenidas, estacionamentos, espaços
públicos. Brasília, 58 anos após ter sido inaugurada, possui graves problemas
de trânsito. Na cidade circulam mais de 1,5 milhão de carros, afora ônibus,
caminhões e motocicletas. Há engarrafamentos absurdos, que seriam piores não
fosse suas largas avenidas.
As
duas represas de rejeitos – a de Mariana e a de Brumadinho – não estouraram
porque, em si, são inadequadas. Podem até ser, mas não é implausível pensar que
ambas foram afetadas pela má construção e a absoluta ausência de gestão e
manutenção. Só em Minas, dizem, há mais 450 barragens iguais às de Mariana e Brumadinho.
São 450 bombas-relógio.
Bombas-relógio
não faltam no Brasil. No Rio de Janeiro, a ciclovia Tim Maia desabou devido a
um projeto muito mal feito, que não levou em conta o movimento das marés, o que
seria óbvio em vista da localização da obra. Houve também má construção, uso de
material de segunda, ausência de manutenção. Tudo porque o prefeito Eduardo
Paes estava sôfrego em fazer e inaugurar a obra em tempo recorde. Político vive
disse.
Em
São Paulo, dois viadutos, num prazo de três meses, sofreram desnivelamento,
interrompendo o fluxo do trânsito e alertando para os perigos da vida urbana na
Capital paulista. O problema dos dois viadutos é coincidente: a pista cedeu,
provocando degraus de dois metros, pois as vigas de sustentação tinham defeitos
sérios.
Vamos
ver quais as consequências do acidente em Brumadinho. Um sujeito do Psol pediu
a reestatização da Vale, outros pediu o seu fechamento. São dois gaiatos: a
Vale tem cem mil trabalhadores e é a principal responsável pela exportação de
ferro, segundo produto da pauta brasileira de vendas externas. Tudo pode e deve
ser feito para que episódios como este não ocorram, mas deve-se evitar a
estupidez e loucuras.
Acidentes
como esses de Brumadinho e Mariana não são uma exclusividade brasileira. Eles
já ocorreram na Espanha, na Romênia, nos Estados Unidos e no Canadá, para citar
alguns países apenas. No Canadá, em 2004, na província da Colúmbia Britânica, uma
barragem contendo rejeitos tóxicos da extração de cobre e ouro rompeu-se,
despejando milhões de metros cúbicos de lama contaminada. Foi o maior desastre
ambiental da história da mineração no Canadá. O rejeito transbordou o Lago
Polley, avançou pelo rio Hazeltine e atingiu o lago Quesnel. Terra, sistemas
hídricos e habitats de reprodução de salmão foram destruídos. O povo Secwepemc,
em cujo território a mina está localizada, perdeu terras e seus meios
tradicionais de sustentação, que estavam integralmente associados às suas
terras. Ocorrido em 2004, os danos causados pela mina Mount Polley, ainda estão
presentes na vida da região.
O
avanço da economia mundial, a necessidade que os países têm de produzir tudo
cada vez em maior quantidade, o afã do consumo em escala planetária – vem
levando o planeta a desastres semelhantes a cada dia, com maior frequência e
dimensão. Discursos ecológicos e discursos anticonsumistas não levam a nada,
pois quem irá convencer os bilhões de seres humanos que querem possuir bens e consumir
adoidado, dependendo da riqueza mineral do planeta? Escrevo textos como esse,
mas juro que não conheço nem sei responder as questões que formulei. Como disse
no início do texto, sou apenas um sujeito desencantado da vida, que ao pensar
nos problemas da nossa época é dominado pela velha depressão suicida.