terça-feira, 29 de janeiro de 2019

O mundo é um vasto hospício - e eu sou um hóspede


Não sou engenheiro. Não sou arquiteto. Não sou especialista em meio ambiente. Não sou, sequer, “especialista em situações de risco” ou “especialista em gerenciamento de crise”, titulações adotadas por acadêmicos para falar sobre a tragédia de Brumadinho.
Sou, como todos sabem, um observador desencantado da vida – e é nessa condição que vou dizer o que penso sobre o ocorrido naquela cidade mineira. Antes, porém, conto uma história.
Juscelino Kubitschek foi eleito para cumprir um mandato de cinco anos. Na época, não havia reeleição. JK pretendia construir Brasília no seu primeiro mandato. Assim, logo que foi empossado, em 31 de janeiro de 1956, o presidente encaminhou ao Congresso o projeto de lei de construção da nova capital, definindo prazos, custos, fontes de financiamento. Antes de virar lei, o projeto rodou no Congresso durante dois anos, o que significa que Brasília foi construída (precariamente) e inaugurada (com pompa) nos três anos finais do mandato presidencial. JK temia que o seu sucessor reduzisse a velocidade da obra ou simplesmente a paralisasse, como prometia Jânio Quadros, que, a partir de 1961, viria a ser seu substituto no cargo. JQ odiava Brasília (e desprezava JK, diga-se), a respeito da qual usava os mais variados impropérios e xingos, entre os quais um que usou ao renunciar: “cidade maldita”. JK concluiu que era preciso correr – e criar o chamado fato consumado, diante do qual nada poderia ser feito. Estive em Brasília em 1959 – e fiquei impressionado com duas coisas: a poeira e o fato de que a cidade não dormia.
Resido em Brasília há 39 anos – e quando aqui cheguei a cidade tinha 19 anos e não era nem sombra do que é hoje. A Asa Norte, bairro onde moro, tinha pouquíssimas construções. Residi numa quadra, a 316, que era um verdadeiro pântano nos meses de chuva e um Saara nos meses de seca. Brasília, que tinha sido inaugurada em 1961 era ainda uma cidade inacabada, pois suas obras não eram mais tocadas no ritmo dos tempos de JK. Eu vinha do Rio e de São Paulo (onde morei oito anos) – e, em tais condições, achei Brasília um horror: passei dez anos para me acostumar com a vida na capital brasileira. Hoje, vivo bem em Brasília, apesar de que, se eu pudesse, estaria vivendo no Penedo, cidade alagoana.
A construção apressada de Brasília e a falta de manutenção ao longo do tempo criaram enormes problemas, que hoje, 2019, estão pondo a cabeça de fora. Obras feitas de supetão é a melhor forma de vê-las se deteriorar no curto e médio prazos. Vimos recentemente uma ponte do Eixo principal de Brasília desabar devido a defeitos de construção, falta de gestão e conservação e fluxo excessivo de veículos. Há quem diga que outros problemas existem em muitos outros trechos do Eixo. Será? Saberemos quando houver outros desabamentos.
Brasília foi construída sob a égide de alguns equívocos políticos, um deles foi a rapidez, ditada por um jogo político mesquinho: JK queria se candidatar novamente em 1965 e Brasília seria o seu porta-estandarte eleitoral. Outro foi o projeto fundado em preceitos ideológicos. A Praça dos Três Poderes é um bom exemplo. Inspirada na Praça Vermelha (Moscou) e na Praça da Paz Celestial (Pequim), a Praça dos Três Poderes é um imenso quadrilátero de cimento e pedra, sem uma só árvore, sem uma só sombra, onde ninguém pode ir sem ter a impressão de estar num forno micro-onda. Não nego a beleza arquitetônica de Brasília, mas discuto muito a funcionalidade da cidade.
Pensava-se que Brasília, no auge, teria uma população máxima de 450 mil habitantes; hoje, porém, ela tem mais de 2 milhões. Se Brasília foi construída para ter uma população cinco vezes menor que a atual, conclui-se que a cidade está subdimensionada em ruas (extensão e largura), praças, avenidas, estacionamentos, espaços públicos. Brasília, 58 anos após ter sido inaugurada, possui graves problemas de trânsito. Na cidade circulam mais de 1,5 milhão de carros, afora ônibus, caminhões e motocicletas. Há engarrafamentos absurdos, que seriam piores não fosse suas largas avenidas.
As duas represas de rejeitos – a de Mariana e a de Brumadinho – não estouraram porque, em si, são inadequadas. Podem até ser, mas não é implausível pensar que ambas foram afetadas pela má construção e a absoluta ausência de gestão e manutenção. Só em Minas, dizem, há mais 450 barragens iguais às de Mariana e Brumadinho. São 450 bombas-relógio.
Bombas-relógio não faltam no Brasil. No Rio de Janeiro, a ciclovia Tim Maia desabou devido a um projeto muito mal feito, que não levou em conta o movimento das marés, o que seria óbvio em vista da localização da obra. Houve também má construção, uso de material de segunda, ausência de manutenção. Tudo porque o prefeito Eduardo Paes estava sôfrego em fazer e inaugurar a obra em tempo recorde. Político vive disse.
Em São Paulo, dois viadutos, num prazo de três meses, sofreram desnivelamento, interrompendo o fluxo do trânsito e alertando para os perigos da vida urbana na Capital paulista. O problema dos dois viadutos é coincidente: a pista cedeu, provocando degraus de dois metros, pois as vigas de sustentação tinham defeitos sérios.
Vamos ver quais as consequências do acidente em Brumadinho. Um sujeito do Psol pediu a reestatização da Vale, outros pediu o seu fechamento. São dois gaiatos: a Vale tem cem mil trabalhadores e é a principal responsável pela exportação de ferro, segundo produto da pauta brasileira de vendas externas. Tudo pode e deve ser feito para que episódios como este não ocorram, mas deve-se evitar a estupidez e loucuras.
Acidentes como esses de Brumadinho e Mariana não são uma exclusividade brasileira. Eles já ocorreram na Espanha, na Romênia, nos Estados Unidos e no Canadá, para citar alguns países apenas. No Canadá, em 2004, na província da Colúmbia Britânica, uma barragem contendo rejeitos tóxicos da extração de cobre e ouro rompeu-se, despejando milhões de metros cúbicos de lama contaminada. Foi o maior desastre ambiental da história da mineração no Canadá. O rejeito transbordou o Lago Polley, avançou pelo rio Hazeltine e atingiu o lago Quesnel. Terra, sistemas hídricos e habitats de reprodução de salmão foram destruídos. O povo Secwepemc, em cujo território a mina está localizada, perdeu terras e seus meios tradicionais de sustentação, que estavam integralmente associados às suas terras. Ocorrido em 2004, os danos causados pela mina Mount Polley, ainda estão presentes na vida da região.
O avanço da economia mundial, a necessidade que os países têm de produzir tudo cada vez em maior quantidade, o afã do consumo em escala planetária – vem levando o planeta a desastres semelhantes a cada dia, com maior frequência e dimensão. Discursos ecológicos e discursos anticonsumistas não levam a nada, pois quem irá convencer os bilhões de seres humanos que querem possuir bens e consumir adoidado, dependendo da riqueza mineral do planeta? Escrevo textos como esse, mas juro que não conheço nem sei responder as questões que formulei. Como disse no início do texto, sou apenas um sujeito desencantado da vida, que ao pensar nos problemas da nossa época é dominado pela velha depressão suicida.

domingo, 20 de janeiro de 2019

Não há incompatibilidade entre teoria evolucionista e crença religiosa


A mim me parece que a mídia e o meio acadêmico elegeram a ministra Damares Regina Alves como o elo fraco do governo, a ser combatido sem descanso. Vejo jornalistas e acadêmicos deitarem sapiência a partir de frases da ministra, como se eles fossem a cume do saber filosófico – ou, como diz o neto do Velhote do Penedo, os “reis da cocada preta”. Muitos acadêmicos e muitos jornalistas gostam de palpitar sobre o que não sabem ou sabem superficialmente. Alguns deles eu conheço pessoalmente, e manjo como eles agem.
O Brasil não tem uma oposição política capaz de propor e debater alternativas às políticas governamentais. Dias atrás, li, com espanto, um artigo de um economista cujo título diz tudo: “A burrice no poder”. O economista, que se assume como importante intelectual, adotou a categoria “burrice” para explicar a visão dos outros, dos inimigos, dos adversários, dos que não pensam como ele, pois a dele seria enquadrada (e o foi, por ele mesmo, claro) na categoria “inteligência”. Na opinião do economista, políticas não concatenadas à esquerda não funcionam – e, com um exemplo, pontifica: “austeridade é burrice”. Inteligência, segundo o economista, seria o esbanjamento, a gastança, o déficit. Segundo ele, é disso que o capitalismo gosta.
É assim que a chamada esquerda brasileira vê aqueles que eles enquadram no campo da direita. Esquerda seria sinônimo de inteligência; direita, de burrice. Assim caminha a humanidade, assim o mundo se explica, assim a esquerda brasileira será engolida por Bolsonaro.
Li, hoje, uma postagem no Facebook em que o redator fala do suposto despreparo do Bolsonaro (usou, inclusive, a palavra “burrice”), lamentando, de antemão, o papel ridículo que ele fará em Davos. Bobagem. Nenhum chefe de governo vai a uma reunião dessas sem um corpo de assessores que o oriente e, inclusive, escreva seus depoimentos. Aliás, o principal desse tipo de reunião ocorre nos bastidores, onde ministros e assessores debatem e fazem os seus acertos. Acordos nascem sempre em tais ambientes fechados.
Creio que os partidos, jornalistas e acadêmicos que se apresentam como de esquerda foram surpreendidos com a vitória de Bolsonaro, mas, por pura arrogância, não admitem isso – e transformaram em ódio a sua frustração política. Foram a nocaute – e não sabem o que fazer, a não ser debater picuinhas, miudezas – e, vemos agora, lançar sobre os vencedores o epíteto de “burros” com a autoridade própria dos “inteligentes”. Soube hoje que a modelo Giselle Bündchen, que certamente jamais leu um livro, acusou o atual governo de pregar e estimular o desmatamento. A brasileirada que se apresenta como donatária das questões ambientais ganhou, enfim, uma líder – com a vantagem de ser bonita, rica, sensual e viver nas doçuras europeias. O Velhote do Penedo lamenta apenas que, na era PT, época em que foram desmatados quase 300 mil quilômetros quadrados, a ambientalista Bündchen tenha mantido um silêncio ensurdecedor sobre o assunto. Percebam o seguinte: os 300 mil quilômetros quadrados desmatados na era PT equivalem às áreas somadas dos estados do Paraná (199 mil) e Santa Catarina (95 mil). Onde estavam os ambientalistas e os sustentabilistas enquanto tal monstruosidade ocorria? Onde estão os ambientalistas e os sustentabilistas que não denunciam a destruição do baixo Rio São Francisco, agravada com as obras insanas da transposição?
Em mais de 13 anos no poder, o PT não levou a cabo nenhum grande projeto, a não ser aqueles sustentados em estatísticas manipuladas por economistas partidários e nas mágicas dos marqueteiros João Santana e Mônica Moura, os quais estão, desde março de 2017, cumprindo pena de prisão domiciliar. O PT sequer fez a reforma agrária, projeto que esteve sempre na linha de frente do discurso petista. Os sem-terra que no início do governo Lula estavam acampados à beira de estradas, continuam por lá, à míngua. Mas o tiro de misericórdia que matou o PT, no entanto, foi o lodaçal de corrução no qual se atolou – e afundou.
A última carga contra a ministra Damares teve como mote algo que ela disse em 2003 ou 2013 sobre a teoria evolucionista ter chegado às escolas. Notem: uma frase tola, sem profundidade, que não significa nada, mas que deu pretexto a uma enxurrada de tolices e infantilidades. Uma frase que, por sua desimportância, não mereceria crítica ou comentário.
As convicções religiosas da ministra são pessoais – e ela, aceitemos ou não, tem o direito de ser católica, protestante, budista, vascaína, umbandista, vegetariana, vegana, fumante, pastora e ministra. O que se espera da ministra é que ela seja eficiente em assuntos da mulher, família e direitos humanos, que são, estes sim, os objetivos da pasta que lhe cabe gestar. Otto Maria Carpeaux, Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde), Hélio Silva, extraordinários intelectuais, eram religiosos e criam em Deus – e seria estupidez negar qualidade e mérito em seus livros e opiniões.
O próprio Charles Darwin reconheceu que religião e evolucionismo não se misturavam e, mais ainda, não se excluíam. Vejam o que ele escreveu em “A origem das espécies”:
“Quanto aos meus sentimentos religiosos, acerca dos quais tantas vezes me têm perguntado, considero-o como assunto que a ninguém possa interessar senão a mim mesmo. Posso adiantar, porém, que não me parece haver qualquer incompatibilidade entre a aceitação da teoria evolucionista e a crença em Deus”.
Darwin jamais opôs ou conciliou seus estudos científicos à religião que professava. Jamais fez proselitismo político ou científico – nem procurou explicar a evolução natural como produto da engenhosidade de Deus, que teria dado à natureza “poderes” de evoluir e se transformar.
O Velhote do Penedo conheceu e conviveu com inúmeros cientistas das áreas naturais, biológicas, físicas e químicas, que jamais negaram a existência de Deus e da importância da religião na vida das pessoas. Não são poucos os cientistas e filósofos da antiguidade ou clássicos que jamais esconderam a sua religiosidade. Descartes e Galileu eram cristãos confessos. Max Planck, físico alemão, pai da física quântica e ganhador do Prêmio Nobel de 1928, foi taxativo:
“Para onde quer que se dilate o nosso olhar, em parte alguma vemos contradição entre Ciências Naturais e Religião; antes, encontramos plena convergência nos pontos decisivos”.
Karl Marx, ao afirmar que a “religião é o ópio do povo”, não estava rotulando a religião como mecanismo de dominação ideológica ou instrumento de subordinação política. Os partidos comunistas adotaram o materialismo – ou o ateísmo – como única linha filosófica articulada ao marxismo. Em alguns momentos, inclusive, foram perseguidos e punidos os comunistas e simpatizantes que não se assumissem ateus. O obscurantismo e a intransigência ideológica eram traços marcantes dos partidos comunistas.
Marx chegou a dizer que a religião era “uma realização fantástica da essência humana”, pois se tornara a razão geral de consolo e justificação face um mundo cruel, “um mundo sem coração, pelo espírito de uma época sem espírito, pela miséria real”. A religião não seria, portanto, um mecanismo de alienação humana, oposta ao marxismo, mas um refúgio humano contra as mazelas da vida. “A angústia religiosa”, acentuou Marx, “é ao mesmo tempo a expressão da dor real e o protesto contra ela. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, tal como o é o espírito de uma situação sem espírito”. A comparação da religião com o ópio e a visão de que a religião incapacita o homem a enfrentar a realidade é equivocada, típica de um compreensão torta do fenômeno social. Quando se lê Marx, aprende-se muita coisa.
A comparação da religião com o ópio já aparece em escritos de Immanuel Kant, Johann Herder, Ludwig Feuerbach, Bruno Bauer, Heinrich Heine. Este último, em 1840, no seu ensaio sobre Ludwig Börne, observou:
“Bendita seja a religião, que derrama no amargo cálice da humanidade sofredora algumas doces e soporíferas de ópio espiritual, algumas gotas de amor, fé e esperança”.
Se a religião, tomada como uma compreensão imutável da vida, bloqueou durante séculos o avanço do conhecimento, não se pode esquecer, ou deixar de lado, a intransigência dos heréticos comunistas, como bem lembrou A. da Silva Mello, em “Religião: prós e contras”, cujos métodos e propaganda “é uma repetição do que ocorreu em épocas de intolerância religiosa”.
Enfim, a teoria da evolução chegou às escolas, disse Damares, e isto é verdadeiro. Perfeito. Mas o Velhote do Penedo se sente no direito de perguntar: era necessário, em contrapartida, expulsar o ensino e o debate religioso do nosso convívio?  Por que não introduzir o ensino e o debate religioso, de modo a entendermos a religião como um protesto e uma forma de refúgio contra a miséria real em que o homem vive?

quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

O Velhote, aos pedaços


1 - Tenho um amigo que não aceita o fato de viver num país capitalista. Busca compensações, pois supõe equivocadamente que privilégios de corporações garantidos ou subvencionados pelo Estado benevolente, muitas vezes concedidas por governos populistas, são conquistas “do povo unido”, aquela velha história do lento passo da formiguinha rumo ao glorioso mundo do socialismo. Meu amigo ainda acredita nisso.
Meu amigo não entende que certas conquistas são privilégios porque não são generalizáveis, mas restritos a uma parcela minoritária da sociedade. Não são conquistas ou direitos de todos; são privilégios de alguns, de algumas corporações. Em síntese: direito é direito, mas alguns direitos são privilégios corporativos.
2 - Convivi ao longo de minha vida com muita gente de esquerda, de variáveis idades, graus de instrução, tendências, organizações. Com alguns deles, lutei contra a ditadura. Com alguns deles, fui punido pela ditadura.
3 - A nossa luta era uma luta impossível de ser vencida, embora não tivéssemos consciência disso. Enfrentamos a ditadura de peito aberto, talvez porque não nos restasse outro caminho ou outra maneira de lutar. Não tínhamos como entrar na vida política (como a entendemos hoje), os canais possíveis estavam inteiramente bloqueados. Partidos, sindicatos e organizações estudantis ou estavam sob intervenção ou estavam fechados – e os que estavam abertos viviam no colo da ditadura. Só havia dois partidos: um, a Arena, de apoio aos militares; outro, o MDB, de oposição consentida. Só quem viveu naquele tempo sabe o que é isso.
4 - Há anos, durante um papo, o meu amigo marxista-leninista defendeu Stalin – e, por consequência, de forma indireta, os crimes cometidos pelo “guia genial dos povos” –, sob a alegação de que a URSS estava cercada, tinha o socialismo a construir e a história por fazer. Se isto implicasse, como implicou, na morte de milhões de pessoas, os resultados se justificavam por si mesmos. Meu amigo duvidava dos números que apresentavam Stalin como um genocida. Segundo ele, era uma campanha patrocinada pelo imperialismo, cujo objetivo final era a desmoralização do socialismo e do grande líder.
5 - Os argumentos do meu amigo eram insustentáveis, mas sempre houve gente que a pretexto de defender um ideal generoso (na sua origem), não estava nem aí para os crimes cometidos em nome desse mesmo ideal ou da sua deturpação. (Não vou discutir a questão agora, mas o stalinismo só foi possível porque antes dele houve o leninismo, que cravou as bases do totalitarismo soviético).
6 - Na faculdade, namorei uma jovem filha de um ricaço e de uma dondoca deformada pelas inúmeras plásticas que fizera no rosto, nos braços, nos peitos, na bunda. Minha namorada me contou que o pai tinha uma amante, a quem deu um apartamento na Barra e onde eles se encontravam. Disse também que a mãe trepava com um garotão, um fanchono dos bares de Copacabana, que arrancava uma grana preta da velha.
7 - Minha namorada morava no Leblon. Um apartamento enorme, de dois andares. O quarto de minha namorada lembrava uma butique, tantos eram os echarpes, sapatos, calças, vestidos, joias, calcinhas e sutiãs que ela possuía. Na faculdade, andava sempre de calças jeans desbotadas, sandálias e blusinhas básicas. Não usava pintura.
8 – Era (ou dizia-se) do Partido Comunista Brasileiro, o Partidão. Minha namorada nunca leu um só livro dos clássicos do marxista: tentei fazê-la ler, para início de conversa, “Teoria do desenvolvimento capitalista”, de Paul M. Sweezy, um sujeito brilhante, diretor da Monthly Review, onde também despontavam Leo Huberman, C. Wright Mills, Tom Bottomore, entre outros. Minha namorada não só não leu o livro, como perdeu o meu exemplar.
9 - Um dia, depois de alguns drinques e sexo, minha namorada confessou-me que sentia profundo sentimento de culpa ao ver e pensar na miséria do povo brasileiro – ela, que tinha tudo em quantidades superlativas. Tal sentimento de culpa perante a miséria dos outros é mais generalizado no meio da nossa chamada esquerda do que se possa imaginar. E explica muita coisa, como a ação irracional de parte da esquerda brasileira.
10 - Volto ao meu amigo marxista-leninista. Gosto dele. Trata-se de um excelente professor de sociologia, muito bem visto pelos alunos. Escreveu alguns livros. Não suporta o capitalismo. Não se conforma viver num país onde prevalece o mercado, o lucro e – nojo supremo – a exploração do homem pelo homem. Ou seja: tudo aquilo que garante o crescimento da China.
O Velhote do Penedo viveu também o mesmo drama e angústia do seu amigo professor de sociologia. Com a idade, porém, e com os percalços vividos nos últimos trinta anos pelo ideal socialista, o Velhote aprendeu que não devia mais se autoinfringir com um tipo de dor para o qual não há solução. Ou seja, sem abandonar o ideal (abstrato), o Velhote passou a compreender que viver numa sociedade capitalista implica, obviamente, na convivência com as práticas capitalistas – e que o apelo à intervenção estatal não significa necessariamente prática socialista ou de esquerda, mas forma e instrumento de gestão de privilégios. Não vou sofrer com a existência do lucro na sociedade em que vivo, pois o lucro é inerente à sociedade em que nasci e devo morrer. Isto não é aceitar o lucro (como um valor absoluto) nem possuir uma visão resignada do mundo, mas compreender que não é possível negar o óbvio.
Quero deixar claro que capitalismo é capitalismo, lucro é lucro, mercado é mercado. Outro amigo meu admite o liberalismo, mas despreza o neoliberalismo, o que no fundo é uma tolice ou, melhor, uma forma consciente ou inconsciente de aceitar a exploração capitalista “dentro de certos limites”. Não há meio capitalismo, como não há meio lucro ou meio mercado. Mas a China nos ensina que há meio socialismo.
11 - Na época em que o Velhote era estudante, e sonhava em derrubar na marra a ditadura cruel que nos oprimia, o discurso anticorrupção era vista com extremo desprezo, era sinônimo de “lacerdismo”, prática de ação política do político Carlos Lacerda. Repetia-se à exaustão que a corrupção era inerente ao modo de produção capitalista. De outra maneira: o capitalismo, para sobreviver, impunha a corrupção que era uma forma de entorpecer a atrair pessoas.
12 - Portanto, o fundamental, segundo a nossa catatonia infanto-juvenil, era lutar contra o capitalismo, o mal de todos os males, o gerador de todas as porcarias, inclusive a corrupção. Com o socialismo, a corrupção desapareceria. Era o que nós pensávamos na época. Hoje, sabemos que a corrupção na estrutura de poder da URSS – e nas entranhas dos países socialistas do Leste europeu – era, no mínimo, da mesma grandeza que a corrupção nos países capitalistas. Pensávamos que lutar e denunciar a corrupção era coisa de “pequeno burguês alienado”.
13 - O Velhote do Penedo considera a luta contra a corrupção uma prática sob certas circunstâncias progressista, um esforço constante de exercício ético, um luta pela cidadania e respeito pelos outros. Corrupção é crime que equivale à tortura – esta é a opinião do Velhote, cujo amigo, professor de sociologia, discorda; para ele, denunciar a corrupção é coisa de pequeno burguês moralista.
14 - Tudo se conserta na vida, menos a natureza do homem. Freud observou, num ensaio trágico, que todos nós temos um instinto de morte, o desejo e o medo de morrer, e que esses dois sentimentos nos aterrorizam, o que nos faz convertê-los em agressão ao próximo. Uma inversão paranoica do medo da morte.
Alguns freudianos rejeitaram essa concepção, mas até marxistas (do período esperançoso), como Rosa Luxemburgo, perceberam isso, mas à maneira deles. Rosa, por exemplo, afirmou que a alternativa ao socialismo era a barbárie. Os marxistas (de todos os tons que conheço) sofrem até hoje com a derrocada do socialismo mundial, principalmente porque, consciente ou inconscientemente, não sabem o que fazer. Muitos viveram grande parte de sua vida embalados na esperança do socialismo.
15 - Disse antes que no íntimo mais profundo do ser humano a ideia da morte é a fonte de seu sofrimento inconsciente e explica muitas das suas reações irracionais. O que torna a nossa vida razoavelmente suportável, disse Baudrillard, é o esquecimento da morte. O sociólogo francês sacou que seria insuportável viver com a ideia de que vamos morrer a martelar permanentemente a nossa cabeça. Nelson Rodrigues, que certamente não conhecia Baudrillard, foi mais direto: somos perecíveis, mas esquecemos que somos perecíveis.
É esta sensação de que somos perecíveis, somada à derrocada de nossos ideais de vida, que nos empurra gloriosamente à inquieta consciência de que viver é um absurdo, pois lutamos por coisas que acreditamos sem que tenhamos chance alguma de usufruir delas. Meu amigo marxista-leninista sofre porque o socialismo acabou. Sofre porque jamais viverá num país socialista. Sofre porque não aceita viver num país capitalista, sabendo, ainda por cima, de que o socialismo acabou. “Se Deus não existe, tudo é permitido”, escreveu Dostoiévski em “Irmãos Karamazov”. Se o socialismo acabou, nada mais resta na vida, diria o meu amigo marxista-leninista. 
16 - Entendo, claro, o que nos empurrou em direção ao nada: nossa incapacidade de sobreviver sem crenças, mitos e paixões. Alguns seguem os caminhos da religiosidade, outros da crença em líderes messiânicos ou em ideais. Não foi por outro motivo que Albert Camus, em “O mito de Sísifo”, assinalou que “só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio”. Mas esta é outra história.