1
- Tenho um amigo que não aceita o fato de viver num país capitalista. Busca compensações,
pois supõe equivocadamente que privilégios de corporações garantidos ou
subvencionados pelo Estado benevolente, muitas vezes concedidas por governos
populistas, são conquistas “do povo unido”, aquela velha história do lento
passo da formiguinha rumo ao glorioso mundo do socialismo. Meu amigo ainda
acredita nisso.
Meu
amigo não entende que certas conquistas são privilégios porque não são
generalizáveis, mas restritos a uma parcela minoritária da sociedade. Não são
conquistas ou direitos de todos; são privilégios de alguns, de algumas
corporações. Em síntese: direito é direito, mas alguns direitos são privilégios
corporativos.
2
- Convivi ao longo de minha vida com muita gente de esquerda, de variáveis idades, graus de instrução, tendências, organizações. Com alguns deles, lutei
contra a ditadura. Com alguns deles, fui punido pela ditadura.
3
- A nossa luta era uma luta impossível de ser vencida, embora não tivéssemos
consciência disso. Enfrentamos a ditadura de peito aberto, talvez porque não
nos restasse outro caminho ou outra maneira de lutar. Não tínhamos como entrar
na vida política (como a entendemos hoje), os canais possíveis estavam
inteiramente bloqueados. Partidos, sindicatos e organizações estudantis ou
estavam sob intervenção ou estavam fechados – e os que estavam abertos viviam
no colo da ditadura. Só havia dois partidos: um, a Arena, de apoio aos
militares; outro, o MDB, de oposição consentida. Só quem viveu naquele tempo
sabe o que é isso.
4
- Há anos, durante um papo, o meu amigo marxista-leninista defendeu Stalin – e,
por consequência, de forma indireta, os crimes cometidos pelo “guia genial dos
povos” –, sob a alegação de que a URSS estava cercada, tinha o socialismo a
construir e a história por fazer. Se isto implicasse, como implicou, na morte
de milhões de pessoas, os resultados se justificavam por si mesmos. Meu amigo
duvidava dos números que apresentavam Stalin como um genocida. Segundo ele, era
uma campanha patrocinada pelo imperialismo, cujo objetivo final era a
desmoralização do socialismo e do grande líder.
5
- Os argumentos do meu amigo eram insustentáveis, mas sempre houve gente que a
pretexto de defender um ideal generoso (na sua origem), não estava nem aí para
os crimes cometidos em nome desse mesmo ideal ou da sua deturpação. (Não vou
discutir a questão agora, mas o stalinismo só foi possível porque antes dele
houve o leninismo, que cravou as bases do totalitarismo soviético).
6
- Na faculdade, namorei uma jovem filha de um ricaço e de uma dondoca deformada
pelas inúmeras plásticas que fizera no rosto, nos braços, nos peitos, na bunda.
Minha namorada me contou que o pai tinha uma amante, a quem deu um apartamento
na Barra e onde eles se encontravam. Disse também que a mãe trepava com um
garotão, um fanchono dos bares de Copacabana, que arrancava uma grana preta da
velha.
7
- Minha namorada morava no Leblon. Um apartamento enorme, de dois andares. O
quarto de minha namorada lembrava uma butique, tantos eram os echarpes,
sapatos, calças, vestidos, joias, calcinhas e sutiãs que ela possuía. Na
faculdade, andava sempre de calças jeans desbotadas, sandálias e blusinhas
básicas. Não usava pintura.
8
– Era (ou dizia-se) do Partido Comunista Brasileiro, o Partidão. Minha namorada
nunca leu um só livro dos clássicos do marxista: tentei fazê-la ler, para
início de conversa, “Teoria do desenvolvimento capitalista”, de Paul M. Sweezy,
um sujeito brilhante, diretor da Monthly Review, onde também despontavam Leo
Huberman, C. Wright Mills, Tom Bottomore, entre outros. Minha namorada não só
não leu o livro, como perdeu o meu exemplar.
9
- Um dia, depois de alguns drinques e sexo, minha namorada confessou-me que
sentia profundo sentimento de culpa ao ver e pensar na miséria do povo
brasileiro – ela, que tinha tudo em quantidades superlativas. Tal sentimento de
culpa perante a miséria dos outros é mais generalizado no meio da nossa chamada
esquerda do que se possa imaginar. E explica muita coisa, como a ação
irracional de parte da esquerda brasileira.
10
- Volto ao meu amigo marxista-leninista. Gosto dele. Trata-se de um excelente
professor de sociologia, muito bem visto pelos alunos. Escreveu alguns livros.
Não suporta o capitalismo. Não se conforma viver num país onde prevalece o
mercado, o lucro e – nojo supremo – a exploração do homem pelo homem. Ou seja:
tudo aquilo que garante o crescimento da China.
O
Velhote do Penedo viveu também o mesmo drama e angústia do seu amigo professor
de sociologia. Com a idade, porém, e com os percalços vividos nos últimos
trinta anos pelo ideal socialista, o Velhote aprendeu que não devia mais se
autoinfringir com um tipo de dor para o qual não há solução. Ou seja, sem
abandonar o ideal (abstrato), o Velhote passou a compreender que viver numa
sociedade capitalista implica, obviamente, na convivência com as práticas
capitalistas – e que o apelo à intervenção estatal não significa
necessariamente prática socialista ou de esquerda, mas forma e instrumento de
gestão de privilégios. Não vou sofrer com a existência do lucro na sociedade em
que vivo, pois o lucro é inerente à sociedade em que nasci e devo morrer. Isto
não é aceitar o lucro (como um valor absoluto) nem possuir uma visão resignada
do mundo, mas compreender que não é possível negar o óbvio.
Quero
deixar claro que capitalismo é capitalismo, lucro é lucro, mercado é mercado.
Outro amigo meu admite o liberalismo, mas despreza o neoliberalismo, o que no
fundo é uma tolice ou, melhor, uma forma consciente ou inconsciente de aceitar
a exploração capitalista “dentro de certos limites”. Não há meio capitalismo,
como não há meio lucro ou meio mercado. Mas a China nos ensina que há meio
socialismo.
11
- Na época em que o Velhote era estudante, e sonhava em derrubar na marra a
ditadura cruel que nos oprimia, o discurso anticorrupção era vista com extremo
desprezo, era sinônimo de “lacerdismo”, prática de ação política do político
Carlos Lacerda. Repetia-se à exaustão que a corrupção era inerente ao modo de
produção capitalista. De outra maneira: o capitalismo, para sobreviver, impunha
a corrupção que era uma forma de entorpecer a atrair pessoas.
12
- Portanto, o fundamental, segundo a nossa catatonia infanto-juvenil, era lutar
contra o capitalismo, o mal de todos os males, o gerador de todas as porcarias,
inclusive a corrupção. Com o socialismo, a corrupção desapareceria. Era o que
nós pensávamos na época. Hoje, sabemos que a corrupção na estrutura de poder da
URSS – e nas entranhas dos países socialistas do Leste europeu – era, no
mínimo, da mesma grandeza que a corrupção nos países capitalistas. Pensávamos
que lutar e denunciar a corrupção era coisa de “pequeno burguês alienado”.
13
- O Velhote do Penedo considera a luta contra a corrupção uma prática sob
certas circunstâncias progressista, um esforço constante de exercício ético, um
luta pela cidadania e respeito pelos outros. Corrupção é crime que equivale à
tortura – esta é a opinião do Velhote, cujo amigo, professor de sociologia,
discorda; para ele, denunciar a corrupção é coisa de pequeno burguês moralista.
14
- Tudo se conserta na vida, menos a natureza do homem. Freud observou, num
ensaio trágico, que todos nós temos um instinto de morte, o desejo e o medo de
morrer, e que esses dois sentimentos nos aterrorizam, o que nos faz
convertê-los em agressão ao próximo. Uma inversão paranoica do medo da morte.
Alguns
freudianos rejeitaram essa concepção, mas até marxistas (do período
esperançoso), como Rosa Luxemburgo, perceberam isso, mas à maneira deles. Rosa,
por exemplo, afirmou que a alternativa ao socialismo era a barbárie. Os marxistas
(de todos os tons que conheço) sofrem até hoje com a derrocada do socialismo
mundial, principalmente porque, consciente ou inconscientemente, não sabem o
que fazer. Muitos viveram grande parte de sua vida embalados na esperança do
socialismo.
15
- Disse antes que no íntimo mais profundo do ser humano a ideia da morte é a
fonte de seu sofrimento inconsciente e explica muitas das suas reações
irracionais. O que torna a nossa vida razoavelmente suportável, disse
Baudrillard, é o esquecimento da morte. O sociólogo francês sacou que seria
insuportável viver com a ideia de que vamos morrer a martelar permanentemente a
nossa cabeça. Nelson Rodrigues, que certamente não conhecia Baudrillard, foi
mais direto: somos perecíveis, mas esquecemos que somos perecíveis.
É
esta sensação de que somos perecíveis, somada à derrocada de nossos ideais de
vida, que nos empurra gloriosamente à inquieta consciência de que viver é um
absurdo, pois lutamos por coisas que acreditamos sem que tenhamos chance alguma
de usufruir delas. Meu amigo marxista-leninista sofre porque o socialismo
acabou. Sofre porque jamais viverá num país socialista. Sofre porque não aceita
viver num país capitalista, sabendo, ainda por cima, de que o socialismo
acabou. “Se Deus não existe, tudo é permitido”, escreveu Dostoiévski em “Irmãos
Karamazov”. Se o socialismo acabou, nada mais resta na vida, diria o meu amigo
marxista-leninista.
16
- Entendo, claro, o que nos empurrou em direção ao nada: nossa incapacidade de
sobreviver sem crenças, mitos e paixões. Alguns seguem os caminhos da
religiosidade, outros da crença em líderes messiânicos ou em ideais. Não foi
por outro motivo que Albert Camus, em “O mito de Sísifo”, assinalou que “só
existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio”. Mas esta é outra
história.
Olá Ronaldo Conde Aguiar, estamos finalizando um documentário sobre Manoel Bonfim e sua participação é fundamental. Deixo meu ZAP: 21 9 7995 7981. Meu face: Carlos Pronzato. Abs
ResponderExcluirRonaldo Conde Aguiar, deixamos diversas mensagens no seu face, se puder nos passar seu fone agradecemos. Um abraço.
ResponderExcluirBrilhante texto, existencialismo pós-moderno!
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