quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

O Velhote, aos pedaços


1 - Tenho um amigo que não aceita o fato de viver num país capitalista. Busca compensações, pois supõe equivocadamente que privilégios de corporações garantidos ou subvencionados pelo Estado benevolente, muitas vezes concedidas por governos populistas, são conquistas “do povo unido”, aquela velha história do lento passo da formiguinha rumo ao glorioso mundo do socialismo. Meu amigo ainda acredita nisso.
Meu amigo não entende que certas conquistas são privilégios porque não são generalizáveis, mas restritos a uma parcela minoritária da sociedade. Não são conquistas ou direitos de todos; são privilégios de alguns, de algumas corporações. Em síntese: direito é direito, mas alguns direitos são privilégios corporativos.
2 - Convivi ao longo de minha vida com muita gente de esquerda, de variáveis idades, graus de instrução, tendências, organizações. Com alguns deles, lutei contra a ditadura. Com alguns deles, fui punido pela ditadura.
3 - A nossa luta era uma luta impossível de ser vencida, embora não tivéssemos consciência disso. Enfrentamos a ditadura de peito aberto, talvez porque não nos restasse outro caminho ou outra maneira de lutar. Não tínhamos como entrar na vida política (como a entendemos hoje), os canais possíveis estavam inteiramente bloqueados. Partidos, sindicatos e organizações estudantis ou estavam sob intervenção ou estavam fechados – e os que estavam abertos viviam no colo da ditadura. Só havia dois partidos: um, a Arena, de apoio aos militares; outro, o MDB, de oposição consentida. Só quem viveu naquele tempo sabe o que é isso.
4 - Há anos, durante um papo, o meu amigo marxista-leninista defendeu Stalin – e, por consequência, de forma indireta, os crimes cometidos pelo “guia genial dos povos” –, sob a alegação de que a URSS estava cercada, tinha o socialismo a construir e a história por fazer. Se isto implicasse, como implicou, na morte de milhões de pessoas, os resultados se justificavam por si mesmos. Meu amigo duvidava dos números que apresentavam Stalin como um genocida. Segundo ele, era uma campanha patrocinada pelo imperialismo, cujo objetivo final era a desmoralização do socialismo e do grande líder.
5 - Os argumentos do meu amigo eram insustentáveis, mas sempre houve gente que a pretexto de defender um ideal generoso (na sua origem), não estava nem aí para os crimes cometidos em nome desse mesmo ideal ou da sua deturpação. (Não vou discutir a questão agora, mas o stalinismo só foi possível porque antes dele houve o leninismo, que cravou as bases do totalitarismo soviético).
6 - Na faculdade, namorei uma jovem filha de um ricaço e de uma dondoca deformada pelas inúmeras plásticas que fizera no rosto, nos braços, nos peitos, na bunda. Minha namorada me contou que o pai tinha uma amante, a quem deu um apartamento na Barra e onde eles se encontravam. Disse também que a mãe trepava com um garotão, um fanchono dos bares de Copacabana, que arrancava uma grana preta da velha.
7 - Minha namorada morava no Leblon. Um apartamento enorme, de dois andares. O quarto de minha namorada lembrava uma butique, tantos eram os echarpes, sapatos, calças, vestidos, joias, calcinhas e sutiãs que ela possuía. Na faculdade, andava sempre de calças jeans desbotadas, sandálias e blusinhas básicas. Não usava pintura.
8 – Era (ou dizia-se) do Partido Comunista Brasileiro, o Partidão. Minha namorada nunca leu um só livro dos clássicos do marxista: tentei fazê-la ler, para início de conversa, “Teoria do desenvolvimento capitalista”, de Paul M. Sweezy, um sujeito brilhante, diretor da Monthly Review, onde também despontavam Leo Huberman, C. Wright Mills, Tom Bottomore, entre outros. Minha namorada não só não leu o livro, como perdeu o meu exemplar.
9 - Um dia, depois de alguns drinques e sexo, minha namorada confessou-me que sentia profundo sentimento de culpa ao ver e pensar na miséria do povo brasileiro – ela, que tinha tudo em quantidades superlativas. Tal sentimento de culpa perante a miséria dos outros é mais generalizado no meio da nossa chamada esquerda do que se possa imaginar. E explica muita coisa, como a ação irracional de parte da esquerda brasileira.
10 - Volto ao meu amigo marxista-leninista. Gosto dele. Trata-se de um excelente professor de sociologia, muito bem visto pelos alunos. Escreveu alguns livros. Não suporta o capitalismo. Não se conforma viver num país onde prevalece o mercado, o lucro e – nojo supremo – a exploração do homem pelo homem. Ou seja: tudo aquilo que garante o crescimento da China.
O Velhote do Penedo viveu também o mesmo drama e angústia do seu amigo professor de sociologia. Com a idade, porém, e com os percalços vividos nos últimos trinta anos pelo ideal socialista, o Velhote aprendeu que não devia mais se autoinfringir com um tipo de dor para o qual não há solução. Ou seja, sem abandonar o ideal (abstrato), o Velhote passou a compreender que viver numa sociedade capitalista implica, obviamente, na convivência com as práticas capitalistas – e que o apelo à intervenção estatal não significa necessariamente prática socialista ou de esquerda, mas forma e instrumento de gestão de privilégios. Não vou sofrer com a existência do lucro na sociedade em que vivo, pois o lucro é inerente à sociedade em que nasci e devo morrer. Isto não é aceitar o lucro (como um valor absoluto) nem possuir uma visão resignada do mundo, mas compreender que não é possível negar o óbvio.
Quero deixar claro que capitalismo é capitalismo, lucro é lucro, mercado é mercado. Outro amigo meu admite o liberalismo, mas despreza o neoliberalismo, o que no fundo é uma tolice ou, melhor, uma forma consciente ou inconsciente de aceitar a exploração capitalista “dentro de certos limites”. Não há meio capitalismo, como não há meio lucro ou meio mercado. Mas a China nos ensina que há meio socialismo.
11 - Na época em que o Velhote era estudante, e sonhava em derrubar na marra a ditadura cruel que nos oprimia, o discurso anticorrupção era vista com extremo desprezo, era sinônimo de “lacerdismo”, prática de ação política do político Carlos Lacerda. Repetia-se à exaustão que a corrupção era inerente ao modo de produção capitalista. De outra maneira: o capitalismo, para sobreviver, impunha a corrupção que era uma forma de entorpecer a atrair pessoas.
12 - Portanto, o fundamental, segundo a nossa catatonia infanto-juvenil, era lutar contra o capitalismo, o mal de todos os males, o gerador de todas as porcarias, inclusive a corrupção. Com o socialismo, a corrupção desapareceria. Era o que nós pensávamos na época. Hoje, sabemos que a corrupção na estrutura de poder da URSS – e nas entranhas dos países socialistas do Leste europeu – era, no mínimo, da mesma grandeza que a corrupção nos países capitalistas. Pensávamos que lutar e denunciar a corrupção era coisa de “pequeno burguês alienado”.
13 - O Velhote do Penedo considera a luta contra a corrupção uma prática sob certas circunstâncias progressista, um esforço constante de exercício ético, um luta pela cidadania e respeito pelos outros. Corrupção é crime que equivale à tortura – esta é a opinião do Velhote, cujo amigo, professor de sociologia, discorda; para ele, denunciar a corrupção é coisa de pequeno burguês moralista.
14 - Tudo se conserta na vida, menos a natureza do homem. Freud observou, num ensaio trágico, que todos nós temos um instinto de morte, o desejo e o medo de morrer, e que esses dois sentimentos nos aterrorizam, o que nos faz convertê-los em agressão ao próximo. Uma inversão paranoica do medo da morte.
Alguns freudianos rejeitaram essa concepção, mas até marxistas (do período esperançoso), como Rosa Luxemburgo, perceberam isso, mas à maneira deles. Rosa, por exemplo, afirmou que a alternativa ao socialismo era a barbárie. Os marxistas (de todos os tons que conheço) sofrem até hoje com a derrocada do socialismo mundial, principalmente porque, consciente ou inconscientemente, não sabem o que fazer. Muitos viveram grande parte de sua vida embalados na esperança do socialismo.
15 - Disse antes que no íntimo mais profundo do ser humano a ideia da morte é a fonte de seu sofrimento inconsciente e explica muitas das suas reações irracionais. O que torna a nossa vida razoavelmente suportável, disse Baudrillard, é o esquecimento da morte. O sociólogo francês sacou que seria insuportável viver com a ideia de que vamos morrer a martelar permanentemente a nossa cabeça. Nelson Rodrigues, que certamente não conhecia Baudrillard, foi mais direto: somos perecíveis, mas esquecemos que somos perecíveis.
É esta sensação de que somos perecíveis, somada à derrocada de nossos ideais de vida, que nos empurra gloriosamente à inquieta consciência de que viver é um absurdo, pois lutamos por coisas que acreditamos sem que tenhamos chance alguma de usufruir delas. Meu amigo marxista-leninista sofre porque o socialismo acabou. Sofre porque jamais viverá num país socialista. Sofre porque não aceita viver num país capitalista, sabendo, ainda por cima, de que o socialismo acabou. “Se Deus não existe, tudo é permitido”, escreveu Dostoiévski em “Irmãos Karamazov”. Se o socialismo acabou, nada mais resta na vida, diria o meu amigo marxista-leninista. 
16 - Entendo, claro, o que nos empurrou em direção ao nada: nossa incapacidade de sobreviver sem crenças, mitos e paixões. Alguns seguem os caminhos da religiosidade, outros da crença em líderes messiânicos ou em ideais. Não foi por outro motivo que Albert Camus, em “O mito de Sísifo”, assinalou que “só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio”. Mas esta é outra história.

3 comentários:

  1. Olá Ronaldo Conde Aguiar, estamos finalizando um documentário sobre Manoel Bonfim e sua participação é fundamental. Deixo meu ZAP: 21 9 7995 7981. Meu face: Carlos Pronzato. Abs

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  2. Ronaldo Conde Aguiar, deixamos diversas mensagens no seu face, se puder nos passar seu fone agradecemos. Um abraço.

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  3. Brilhante texto, existencialismo pós-moderno!

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