sábado, 1 de fevereiro de 2020

A mídia tropeça quando fala em cultura


Diário do Velhote do Penedo (6)

Afinal, o que é cultura?
De acordo com a mídia brasileira, cultura é a soma dos mecanismos públicos que financiam espetáculos mais os que fazem tais espetáculos. Ou seja, cultura seria nada mais que o produto da soma da lei Rouanet com alguns atores da Globo. Outro dia, a jornalista Zileide Silva especulou: “será que a secretária Regina Duarte terá condições de conter a reação da cultura? O raciocínio da jornalista é trevoso, mas é evidente que ela não tem a menor ideia do que seja cultura. A jornalista falou como se cultura fosse um bicho que cospe, morde e vomita.
Há inúmeros livros que tratam do conceito de cultura. Muita gente – principalmente a gente da mídia que se arvora debater o assunto – faria bem se lesse pelo menos um deles. Seria um bom começo. Ler não dói – e é útil.
Cultura é a síntese dos saberes sociais – e se propaga pela sociedade através de seus membros individuais e coletivos, segundo as mais variadas formas e manifestações. Numa sociedade diversificada, as manifestações culturais seguem padrões e estilos diferenciados, ricos e complexos. Elas, porém, interagem: cada uma delas influência mais ou menos as demais.
Há povos, contudo, cuja cultura material é simples, pois sua estrutura social é também simples. É o caso, por exemplo, do povo Nuer, cerca de duzentas mil pessoas que vivem na região pantanosa do Sudão meridional, entre os rios Sobat e Bahr el Ghazal, tributários do Nilo. Os Nuer foram estudados pelo antropólogo britânico Edward Evans-Pritchard (1902-1973), a pedido do governo do Sudão.
Os Nuer são eminentemente pastoris – e definem todos os processos e relacionamentos sociais em função do criatório. Não praticam a escrita nem a pintura. Seus cantos e danças estão vinculados aos animais. Seu idioma social, conforme Pritchard, é um idioma estruturado e referenciado ao idioma bovino. Tanto nas negociações matrimoniais, como nas situações rituais e disputas legais, só serão compreendidas através de um terminologia de cores, idades, sexos dos animais. São padrões culturais à sua maneira – e são eles que garantem a coesão social do grupo.
Na sociedade brasileira, a compreensão do que seja cultura deve ser complexa, generalizada e diversificada, tal como é a organização social do país. Somos um país que sofreu as mais variadas influências durante sua formação desigual – e do amálgama e combinação de tais influências resultou o que somos. Dos indígenas achados por Cabral, aos negros escravos trazidos à força para o Brasil, aos portugueses, aos milhões de imigrantes de todas as origens, todos trouxeram os seus saberes herdados – e aqui, através de um processo simbiótica, criaram o que chamamos de cultura brasileira. Um exemplo: o chorinho, estilo de música dolente e “choroso”, foi criado por imigrantes portugueses, saudosos de sua terra.
Cultura é a expressão da vida humana em sociedade, através de variadas e múltiplas manifestações. Alceu Maynard Araújo, em “Cultura popular brasileira” estuda as mais variadas formas de manifestações da cultura brasileira – festas, bailados, danças, folguedos, músicas, ritos, sabenças, linguagem típica, lendas, ates, cozinha regional e popular, trajes. Maynard mostrou ainda as características e diferenças dos principais acontecimentos da cultura popular, das festas do Divino (que mereceram ainda um excelente estudo de Fernando Oliveira de Moraes, “A festa do divino em Mogi das Cruzes”) ao ritual de preparação do espinhaço da ovelha.
A chamada cultura urbana, sofisticada, de classe média, a cultura defendida por gente dependente de recursos públicos para realizá-la, é apenas um parcela ínfima do que podemos chamar de cultura. Talvez não seja sequer a mais importante. Câmara Cascudo escreveu dois livros, entre muitos outros, que dão a dimensão de como gente do povo, de baixa instrução formal, são capazes de executar verdadeiras obras de arte e construir instrumentos do seu trabalho: “Jangada – uma pesquisa etnográfica” e “História dos nossos gestos”. Câmara Cascudo é um autor esquecido pelos cursos de sociologia e antropologia das nossas universidades, sempre subservientes aos autores franceses da moda. Quando a atriz Fernanda Montenegro vincula cultura à educação (formal, diga-se), ela não sabe o que diz, pois cultura não é privilégio dos letrados. Os iletrados também fazem cultura – tanto é assim que os indígenas cultivam danças, cantos, cestaria, maneiras de ser, lendas. Ou isto não é cultura?
Li, recentemente, o livro “As pastorinhas de Pirenópolis”, organizado por Lênia Márcia Meagelli e Neide Rodrigues Gomes, que recomendo. As pastorinhas é um auto representado, como diz o título, na cidade de Pirenópolis, Goiás, por ocasião das não menos tradicionais comemorações da Festa do Divino Espírito Santo. Auto é uma composição teatral, surgida na Idade Média, na Espanha, por volta do século XII. A linguagem do auto é simples. Suas personagens simbolizam as virtudes, os pecados ou representam anjos, demônios e santos. “As pastorinhas de Pirenópolis”, cabe destacar, independe de recursos públicos e da lei Rouanet para existir: vive da contribuições dos moradores da cidade. Foi encenada pela primeira vez, em 1922.
Cabe, por fim, chamar a atenção para três clássicos: o primeiro, só encontrável em sebos, “Mutirão”, de Clóvis Caldeira, no qual ele estuda o esforço de ajuda coletiva que prevalecia (hoje, menos) nos interiores do Brasil.
O segundo, “Hans Staden”, para o qual existem edições mais recentes. “Hans Staden” é a história de um marujo alemão, que sobreviveu a um naufrágio no litoral paulista e foi aprisionado pelos tupinambás, que tinham por hábito comer (devorar) seus prisioneiros. Em pânico, Staden sobreviveu à prisão, mas escreveu sobre os costumes e rituais (culturas) dos tupinambás. Staden nunca soube por que os seus captores o pouparam, mas legou a todos nós um livro que, segundo Monteiro Lobato, deveria estar presente em todas as nossas escolas. Infelizmente, o conselho de Lobato não foi atendido – e poucos brasileiros conhecem o livro.
Por fim, outro livro raro: “O dialeto caipira”, de Amadeu Amaral, que demonstra de forma indiscutível uma das tantas línguas faladas no Brasil. É uma joia.

2 comentários:

  1. Seu texto é ótimo e sua cidade é linda. Estive aí em 1985.

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  2. Agradeço a quem trouxe este texto ao face, graças a ele conheci (como amostra grátis) meu novo fornecedor de escritos que valem leitura atenta. Será remédio para minha anemia cultural.

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