Diário do Velhote do Penedo (6)
Afinal, o que é cultura?
De acordo com a mídia brasileira, cultura é a soma dos mecanismos
públicos que financiam espetáculos mais os que fazem tais espetáculos. Ou seja,
cultura seria nada mais que o produto da soma da lei Rouanet com alguns atores da
Globo. Outro dia, a jornalista Zileide Silva especulou: “será que a secretária
Regina Duarte terá condições de conter a reação da cultura? O raciocínio
da jornalista é trevoso, mas é evidente que ela não tem a menor ideia do que
seja cultura. A jornalista falou como se cultura fosse um bicho que cospe,
morde e vomita.
Há inúmeros livros que tratam do conceito de cultura. Muita gente
– principalmente a gente da mídia que se arvora debater o assunto – faria bem
se lesse pelo menos um deles. Seria um bom começo. Ler não dói – e é útil.
Cultura é a síntese dos saberes sociais – e se propaga pela
sociedade através de seus membros individuais e coletivos, segundo as mais
variadas formas e manifestações. Numa sociedade diversificada, as manifestações
culturais seguem padrões e estilos diferenciados, ricos e complexos. Elas,
porém, interagem: cada uma delas influência mais ou menos as demais.
Há povos, contudo, cuja cultura material é simples, pois sua
estrutura social é também simples. É o caso, por exemplo, do povo Nuer, cerca
de duzentas mil pessoas que vivem na região pantanosa do Sudão meridional,
entre os rios Sobat e Bahr el Ghazal, tributários do Nilo. Os Nuer foram
estudados pelo antropólogo britânico Edward Evans-Pritchard (1902-1973), a
pedido do governo do Sudão.
Os Nuer são eminentemente pastoris – e definem todos os processos
e relacionamentos sociais em função do criatório. Não praticam a escrita nem a
pintura. Seus cantos e danças estão vinculados aos animais. Seu idioma social,
conforme Pritchard, é um idioma estruturado e referenciado ao idioma bovino.
Tanto nas negociações matrimoniais, como nas situações rituais e disputas
legais, só serão compreendidas através de um terminologia de cores, idades,
sexos dos animais. São padrões culturais à sua maneira – e são eles que
garantem a coesão social do grupo.
Na sociedade brasileira, a compreensão do que seja cultura deve
ser complexa, generalizada e diversificada, tal como é a organização social do
país. Somos um país que sofreu as mais variadas influências durante sua
formação desigual – e do amálgama e combinação de tais influências resultou o
que somos. Dos indígenas achados por Cabral, aos negros escravos trazidos à
força para o Brasil, aos portugueses, aos milhões de imigrantes de todas as
origens, todos trouxeram os seus saberes herdados – e aqui, através de um
processo simbiótica, criaram o que chamamos de cultura brasileira. Um exemplo:
o chorinho, estilo de música dolente e “choroso”, foi criado por imigrantes
portugueses, saudosos de sua terra.
Cultura é a expressão da vida humana em sociedade, através de
variadas e múltiplas manifestações. Alceu Maynard Araújo, em “Cultura popular
brasileira” estuda as mais variadas formas de manifestações da cultura
brasileira – festas, bailados, danças, folguedos, músicas, ritos, sabenças,
linguagem típica, lendas, ates, cozinha regional e popular, trajes. Maynard mostrou
ainda as características e diferenças dos principais acontecimentos da cultura
popular, das festas do Divino (que mereceram ainda um excelente estudo de
Fernando Oliveira de Moraes, “A festa do divino em Mogi das Cruzes”) ao ritual
de preparação do espinhaço da ovelha.
A chamada cultura urbana, sofisticada, de classe média, a cultura
defendida por gente dependente de recursos públicos para realizá-la, é apenas
um parcela ínfima do que podemos chamar de cultura. Talvez não seja sequer a
mais importante. Câmara Cascudo escreveu dois livros, entre muitos outros, que
dão a dimensão de como gente do povo, de baixa instrução formal, são capazes de
executar verdadeiras obras de arte e construir instrumentos do seu trabalho:
“Jangada – uma pesquisa etnográfica” e “História dos nossos gestos”. Câmara Cascudo
é um autor esquecido pelos cursos de sociologia e antropologia das nossas
universidades, sempre subservientes aos autores franceses da moda. Quando a
atriz Fernanda Montenegro vincula cultura à educação (formal, diga-se), ela não
sabe o que diz, pois cultura não é privilégio dos letrados. Os iletrados também
fazem cultura – tanto é assim que os indígenas cultivam danças, cantos,
cestaria, maneiras de ser, lendas. Ou isto não é cultura?
Li, recentemente, o livro “As pastorinhas de Pirenópolis”, organizado
por Lênia Márcia Meagelli e Neide Rodrigues Gomes, que recomendo. As pastorinhas
é um auto representado, como diz o título, na cidade de Pirenópolis,
Goiás, por ocasião das não menos tradicionais comemorações da Festa do Divino
Espírito Santo. Auto é uma composição teatral, surgida na Idade Média,
na Espanha, por volta do século XII. A linguagem do auto é simples. Suas
personagens simbolizam as virtudes, os pecados ou representam anjos, demônios e
santos. “As pastorinhas de Pirenópolis”, cabe destacar, independe de recursos
públicos e da lei Rouanet para existir: vive da contribuições dos moradores da
cidade. Foi encenada pela primeira vez, em 1922.
Cabe, por fim, chamar a atenção para três clássicos: o primeiro,
só encontrável em sebos, “Mutirão”, de Clóvis Caldeira, no qual ele estuda o
esforço de ajuda coletiva que prevalecia (hoje, menos) nos interiores do
Brasil.
O segundo, “Hans Staden”, para o qual existem edições mais
recentes. “Hans Staden” é a história de um marujo alemão, que sobreviveu a um
naufrágio no litoral paulista e foi aprisionado pelos tupinambás, que tinham
por hábito comer (devorar) seus prisioneiros. Em pânico, Staden sobreviveu à
prisão, mas escreveu sobre os costumes e rituais (culturas) dos tupinambás.
Staden nunca soube por que os seus captores o pouparam, mas legou a todos nós
um livro que, segundo Monteiro Lobato, deveria estar presente em todas as
nossas escolas. Infelizmente, o conselho de Lobato não foi atendido – e poucos
brasileiros conhecem o livro.
Por fim, outro livro raro: “O dialeto caipira”, de Amadeu Amaral,
que demonstra de forma indiscutível uma das tantas línguas faladas no Brasil. É
uma joia.
Seu texto é ótimo e sua cidade é linda. Estive aí em 1985.
ResponderExcluirAgradeço a quem trouxe este texto ao face, graças a ele conheci (como amostra grátis) meu novo fornecedor de escritos que valem leitura atenta. Será remédio para minha anemia cultural.
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