terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Diário do Velhote do Penedo (7)


“Essa gente” – livro confuso e medíocre

O pouco que li a respeito do último livro do Chico Buarque, “Essa gente”, não foram, por assim dizer, críticas simpáticas. “Essa gente” narra a história de Manuel Duarte, um escritor decadente (autocrítica?), autor de um romance histórico de sucesso no passado, “O eunuco do Paço Real”. A decadência de Duarte manifesta-se nos planos financeiro, intelectual e afetivo, mas o que “Essa gente” denota é que, como romancista, Chico Buarque é medíocre. Romance escrito às pressas, “Essa gente” nada mais fez que acentuar a imperícia do autor, já evidente em livros anteriores.
Antes de ser linchado, digo, com sinceridade, que considero Chico Buarque um dos três maiores letristas da música popular (os outros são Noel Rosa e Aldir Blanco), autor de verdadeiras obras-primas como “Com açúcar e com afeto”, “Construção”, ”Valsinha”, “A banda” e “Apesar de você”. Esse é o seu campo. É onde ele se realiza como artista. É onde se manifesta o seu enorme talento. A literatura, porém, não é seu campo, como não é a política. A cabeça política do Chico é oca.
Escrito sob a forma de diário, “Essa gente” procura inserir comentários políticos, que acentuam o primarismo da história e da própria visão política de Chico Buarque. Na página 35 do romance, por exemplo, Chico diz o seguinte:
3 de fevereiro de 2019: (...) Devo ademais te confessar que sinto falta de um amigo com quem partilhar meu inconformismo em relação ao que estão fazendo com nosso país. Será que ainda teremos nossa correspondência violada? Será que ainda incendiarão os nossos livros?
Chico produz uma crítica ao governo, atribuindo a ele violação de correspondência e queima de livros exatamente um mês depois de sua posse. Isso é fazer política? Fazer política é afirmar mentiras? Falar em livros incendiados e correspondência violada no Brasil é tanto mentira como uma baita falsidade histórica. Quem escreve isso não se respeita como escritor. Pior: não respeita seus leitores.
Na página 47, Chico insere, sem quê nem para quê, o que ele possivelmente vislumbra e simboliza como violência das elites contra as massas pobres e desamparadas.
Ele já está para embicar na rua quando freia, passa por mim às cegas (...) e se dirige a um homem deitado na calçada, encostado no muro do clube. É um sujeito com cara de índio velho que se levanta com dificuldade, depois de tomar uns chutes nas costelas. (...) Ao esboçar uma corrida, o índio derrapa e se escora no muro, de onde é arrancado pelo Fúlvio com um safanão que por pouco não o arremessa no asfalto. (...)
Note-se: Chico descreve, em duas páginas, com detalhes, a agressão covarde e absurda de um sujeito da classe alta, sócio do Country Club, a um mendigo. A agressão é gratuita, mas Chico achou por bem inseri-la – inclusive para dar no leitor um choque da nossa realidade cruel, onde representantes das elites surram mendigos nas ruas.
No livro do Chico não há assalto, não há arrastão, não há PCC, não há corrupção de políticos petistas (nem de qualquer outro partido). Há apenas, de um lado, a ação repulsiva das elites e, de outro, violência policial, essa sempre despropositada, como a que ele descreve na página 118:
Chegando ao pé da favela, os moradores fecham a avenida Niemeyer e interpelam aos gritos os policiais de plantão. Não demora a aparecer o reforço, um batalhão de choque com policiais mascarados e um veículo blindado com caveiras estampadas na carroceria. (...) Do nada, uma pedra, um palavrão, uma senha, não sei que fagulha desencadeia o conflito, e os escudos avançam contra os cartazes. Um provável líder comunitário ordena pelo megafone a recuada dos manifestantes, que começam a se dispersar na avenida. É tarde, porém, porque a tropa já lança mão de bombas de gás lacrimogênio, spray de pimenta, tiros de balas de borracha e golpes de cassetete no combate corpo a corpo.
Este é o cenário político desenhado por Chico, causado, como sói ocorrer no imaginário unilateral da esquerda populista, devido a morte de um morador superquerido de todos na favela. Vejam bem: Chico introduz no livro a morte de um trabalhador “superquerido” provocada pela ação da polícia repressora, o que resulta no conflito e na violência policial.
Afora o drama pessoal de Manuel Duarte, ao qual não soube dar dimensão psicológica e humana, Chico descreve o mundo tal e qual as esquerdas brasileiras o fazem: a luta entre os fortes e fracos, entre os opressores e os oprimidos. Polícia, na cabeça de Chico, somente prende e estropia pobres e miseráveis. Na página 119, ele acentua:
(...) Chegamos ao Sheraton, um hotel de luxo onde a polícia só entra se for à cata de favelados.
Ora, a frase é absolutamente tola, pois supõe a possibilidade de haver favelado no Sheraton. A frase não é verdadeira, pois a polícia, nos últimos tempos no Brasil, entrou em prédios de apartamentos e escritórios de luxo em busca de criminosos do “colarinho branca”, ao longo da operação Lava Jato. Aliás, atento à realidade brasileiro, nenhum personagem do Chico refere-se às prisões de políticos e empresários corruptos. Isso não cabe num livro que deseja apenas acentuar a luta entre ricos e pobres – e demonstrar que o governo está ao lado dos ricos, enquanto estes se dedicam a surrar e a esbodegar os pobres e negros.
A esquerda é contra a operação Lava Jato, que levou à cadeia inúmeros políticos do PT, entre os quais Lula, o enfant gâté da esquerda populista e dos artistas ipanemenses.
É claro que, tanto no plano literário como na vida real, a polícia invade os morros porque é lá que se esconde a bandidagem do tráfico, misturando-se à população ordeira e trabalhadora que lá reside. É evidente que há nas favelas assassinatos de gente do bem, mesmo de crianças. Aliás, este é um dos grandes dramas da vida urbana brasileira: nas favelas o crime mistura-se à paz, a bandidagem mistura-se aos residentes. Os conflitos armados são inevitáveis e esses, em alguns casos, produzem vítimas inocentes. É necessário considerar que nem sempre os conflitos são entre a polícia e a bandidagem; há ainda os conflitos entre grupos rivais da bandidagem, em busca de domínio hegemônico.
Se romance (gênero), como disse Lucien Goldman, em “Sociologia do romance”, é a transposição para o plano literário da vida cotidiana na sociedade, a complexidade dessa constitui o cenário essencial da trama. Chico preferiu escrever um romance linear, seguindo as palavras de ordem da esquerda atrasada.
Lionel Trilling, em “A mente no mundo moderno”, observou, citando Matthew Arnold, que literatura é crítica da vida – e que a crítica é o esforço para ver o objeto tal qual ele é em si mesmo. Objeto, no caso, seria o conjunto de ideias e, em particular, o conjunto de ideias sobre a sociedade. Uma obra literária, portanto, não pode ser uma espécie de cartilha política, mas a tentativa de refletir o real, com suas contradições e diferenciações. Enfim, a sociedade humana é complexa e não cabe em limites dicotômicos.
Chico demonstrou, mais uma vez, que possui cabeça antitética, ou seja, esquerda ou direita, bons e maus, branco ou preto, tudo sem nuances. Um dos maiores larápios dos recursos públicos, político que Chico apoiou por recomendação do Lula, residia em luxuoso apartamento do Leblon, possuía mansão em Mangaratiba e só se deslocava de helicóptero. Foi preso no seu luxuoso apartamento. Refiro-me ao ex-governador Sérgio Cabral.
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“Essa gente” é um livro confuso, cujas histórias (diários) dos personagens se confundem e embaralham. O enredo não tem a mínima consistência. Não causa nenhum tipo de emoção no leitor. É um livro frio e descoordenado. Falta-lhe densidade.
Pior de tudo é que Chico abusa de tolices para provar que a esquerda é o lado certo da luta social: há, no livro, o filho de militantes de esquerda que, por isso mesmo, sofre bullying na escola. Pior que isso, porém, é que há, no livro, um pastor evangélico da Igreja da Bem-Aventurança, ligado a um maestro italiano, que castra jovens pobres para abastecer o mercado internacional de canto lírico. Pode haver coisa mais gratuita? Ou mais estúpida? Ou mais fora de sentido?
O que impressiona no romancista Chico Buarque é a sua tendência de inserir passagens que visam unicamente chocar os leitores, como se isso garantisse a ele lugar de destaque na literatura brasileira. São passagens gratuitas, que não acrescentam nada à narrativa. Em “Estorvo”, livro de 1991, Chico descreve o momento em que uma criança de 5 anos faz um boquete no seu avô (Página 81). Em “Essa gente”, nos instantes que antecedem a sua morte, Manuel Duarte recebe, em delírio, a visita da mãe já falecida, que
Sentada na beira do sofá, ela abre os botões de pérola da sua blusa, me mostra os seios e os acaricia com lágrimas nos olhos. Depois levanta minha cabeça e com lábios gelados me beija a boca.
A verdade é que Chico Buarque não chega nem aos pés de Rubem Fonseca, Nelson Rodrigues ou Rafael Montes, para citar três autores realistas, cujas obras põem à nu a natureza violenta e mórbida dos homens, no sentido freudiano da expressão. Na verdade, Chico Buarque aproxima-se de Paulo Coelho, José Sarney ou José Mauro de Vasconcelos.
Chico, porém, tornou-se um ícone, em razão de sua música. Tornou-se um sujeito inatacável, por pior que fossem suas atitudes intelectuais, pessoais e políticas. Ninguém tem coragem de atacar o autor de “Carolina”, pois muitos têm medo das represarias, vulgo patrulhamento ideológico. Chico Buarque acostumou-se a ser paparicado e incensado. Em torno de Chico Buarque é possível ouvir um alarido de gralhas ruidosas.
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Chico foi um dos “intelequituais” que defenderam a censura ao livro “Roberto Carlos em detalhes”, de Paulo César de Araújo.
Chico defendeu a proibição do livro, o seu recolhimento das livrarias e do depósito da editora Planeta – e sua incineração, no melhor estilo III Reich. Chico ainda fez pior: em entrevista dada em Paris e em artigo publicado no Globo, Chico negou que tivesse dado entrevista a Paulo César de Araújo, o que transformava o autor da biografia de Roberto Carlos um criminoso, um mistificador, um falsificador. Contudo, Chico havia dado a entrevista a Paulo César de Araújo, como atestaram o filme e a gravação apresentada pelo último. Desmascarado, Chico apenas disse que tinha esquecido que dera a entrevista. Chico demonstrou, no episódio, falta de caráter, inclusive porque não pediu desculpas públicas pela – aí, sim - sua mentira.
O episódio de censura ao livro de Paulo César de Araújo reuniu, como defensores da censura e da queima dos livros, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Djavan, Lenine, Chico César, Paula Lavigne, entre outros. Foi um episódio triste, vergonhoso e sórdido. Hoje, o Velhote do Penedo leu um manifesto dos “intelequituais” de sempre, denunciando a censura no governo Bolsonaro – e lá estava as assinaturas de Caetano Veloso e Chico Buarque. Cinismo igual nunca vi, pois não presenciei, até agora, nenhum ato governamental no sentido de censurar qualquer obra literária. Vi, porém, Chico e Caetano defender a censura de “Roberto Carlos em detalhes”.
A participação de Chico no episódio nega-lhe qualquer direito de falar em censura. Falta-lhe credibilidade.
É preciso repetir que a cabeça política de Chico Buarque é oca – e suas opções se perdem em razão disso. Em 1978, por exemplo, Chico fez uma marchinha de apoio a Fernando Henrique Cardoso contra Franco Montoro nas eleições para o Senado. A marchinha aproveitava os acordes de “Acorda Maria Bonita”:
A gente não quer mais cacique/ A gente não quer mais feitor/ A gente agora tá no pique/ Fernando Henrique pra Senador.
Bem, FHC não foi eleito, mas é bom destacar que um político íntegro, decente, ético, um dos melhores políticos brasileiros, Franco Montoro, foi chamado por Chico Buarque, com o beneplácito de FHC, de “cacique” e “feitor”. Quem contou esse episódio foi Deonísio da Silva, em “A placenta e o caixão” (Página 372).
Em 1982, Chico fez campanha para o candidato Miro Teixeira, na época menino de recados do Chagas Freitas, uma espécie de Antonio Carlos Magalhães carioca, embora o PT tivesse o seu próprio candidato, Lysâneas Maciel.

Mais “Essa gente”: em detalhes

O Velhote do Penedo arrola em seguida alguns escorregões e jaboticabas de “Essa gente”.
·        O Fúlvio praticamente ordena que eu me acomode no banco de trás, e a esposa a seu lado está com os olhos inchados, uma caixa de lenços de papel no colo. É uma senhora que antes de engordar deve ter sido bem bonita. (Pág. 37)
A última frase do parágrafo denota claramente uma visão preconceituosa do Chico: a mulher de Fúlvio, quando magra, era bem bonita; engordou deixou de ser. As gordas são feias, segundo a lapidar frase de Chico Buarque.
·        Ficamos um tempo nos estudando, e acho graça de ele se parecer comigo em alguns pormenores, até o de guardar o pau do lado direito da calça. (Pág. 42)
O pormenor destacado era dispensável e grosseiro. Escrito apenas para chocar o leitor. Como tantas coisas em “Essa gente”, uma frase tola, vulgar e sem sentido.
·        Clubes de elite em toda parte têm lá suas regras rígidas, e que um novo-rico entre no Country Club, por exemplo, é mais fácil um camelo passar no cu da agulha. (Pág. 44)
Chico Buarque transformou uma imagem bíblica numa imagem vulgar. Qual o objetivo? Chico usa tais expressões apenas para chocar o leitor. A expressão “cu da agulha” não consta do “Dicionário do palavrão e termos afins”, de Mário Souto Maior, nem do “Dicionário de expressões coloquiais brasileiras”, de Nélson Cunha Mello. Foi uma invenção com a chancela Chico Buarque. Nos quatro evangelhos, a expressão usada é “fundo da agulha”.
·        Não preciso ver para saber que pessoas se jogam de viadutos, que urubus estão à espreita, que no morro a polícia atira para matar. (Pág. 48)
É preciso comentar?
·        O sargento Agenor é um negro bonito de presumíveis quarenta anos, se bem que os da sua raça geralmente parecem mais jovens do que são. (Pág. 60)
Os negros, segundo Chico Buarque, reúnem características biológicas (envelhecer é biológico, não?) diferentes dos brancos. Usei os termos do livro: negro e raça.
·        Deve estar faminto, pois agora abocanha o jornal no chão do banheiro e começa a mastigar notícias: soldados disparam oitenta tiros contra carro de família e matam músico negro. (Pág. 89)
Mais uma vez, Chico acentua a visão da polícia como força armada das elites contra o povão.
·        Assim o conduzo sutilmente pelas ruas do Leblon, como no passado conduzia pela nuca mulheres pequenas, que em geral não têm senso de direção. (Pág. 106)
Chico criticou “as mulheres que antes de engordar eram bonitas” (página 37), o negro “cuja raça faz com que eles pareçam mais jovens” (página 60) e, agora, fala das mulheres baixas, “que não têm senso de direção”. Se isto tudo não carrega uma carga de preconceito, não sei o que dizer.
·        Pode falar as maiores sandices, se calhar pode jurar por Deus que a Terra é plana. (Pág. 108)
Aqui, Chico Buarque repete uma bobagem inventada e atribuída a um “inimigo político” por algum cômico ou filósofo da esquerda velha e populista.
·        Laila acredita que o ambiente no país em breve se tornará insuportável para gente de esquerda como ela e intelectuais em geral como eu. (Pág. 149)
Muitos sujeitos da esquerda, como Chico, que vive em Paris, estão saindo do país. O texto de Chico é absolutamente elitista, pois nem todos têm condições de sair do Brasil.
·        Comia qualquer besteira na cozinha e voltava para a cama, dormia, dormia, dormia noite e dia, sonhava com o presidente da República, só tinha pensamentos mórbidos. (Pág. 170)
Somente um sujeito sem compromisso com sua obra é capaz de escrever tal infantilidade.
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Embora tenha muito o que ainda mostrar, o Velhote do Penedo encerra a crítica ao livro “Essa gente”, de Chico Buarque.
É um livro pobre, sem grandeza, escrito às pressas, que repete tolamente o discurso da esquerda atrasada e populista sobre a realidade brasileira. É um livro em que as ideias se contradizem: Chico faz tudo para provar que a polícia (braço armado das elites) ataca e mata apenas o povão, mas afunda no preconceito quando fala das idosas gordas, do negro e das mulheres baixas (que, por serem baixas, não têm senso de direção).
No Brasil, todos os sujeitos que se dizem de esquerda afirmam que lutam por altos valores, mas nada dizem acerca dos baixos valores na Venezuela, Cuba e Coreia do Norte.
Chico poderia ter feito um livro de qualidade, até mesmo engajado, caso não tivesse sido dominado por palavras-de-ordem e uma visão ridiculamente primitiva da realidade brasileira. É um livro sem densidade filosófica - e politicamente chulo.
Não o leiam: não vale a pena. Eu o fiz por deve de ofício.

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