terça-feira, 7 de abril de 2020

Sobre as previsões históricas


A crise do coronavírus – eu prefiro dizer, por razões óbvias, a crise da gripe chinesa – produziu em diversas pessoas a tendência de fazer previsões. Outro dia, por exemplo, li um texto que desenvolvia afirmações transcendentais sobre as políticas brasileira (do tipo: Bolsonaro será substituído por uma junta de militares, a inflação retornará) e mundial (do tipo: derrocada dos EUA e ascensão vertiginosa da China ao topo do mundo, queda do regime dos aiatolás no Irã). Tudo em função ou em decorrência do coronavírus.
Esse negócio de fazer previsões históricas não é novo, conheci algumas que foram, num dado momento, badaladas – e, a seguir, jogadas no lixo, devido o número de tolices que reuniam. Quem faz previsão histórica sempre parte de três premissas: 1) a de que, a partir de fatos de hoje, é possível perceber sintomas de como será o futuro; 2) a de confundir desejo político (de quem prevê) com análise histórica; 3) a de que o autor da previsão histórica é gênio não reconhecido, a não ser por ele mesmo.
No meu tempo de estudante de sociologia, o meu velho e querido professor Orlando Valverde reduziu a pó de traque um estudo coordenado por Hermann Kahn, diretor do Instituto Hudson. Kahn era autor da proposta de se criar diversos lagos artificiais no Brasil (três dos quais na Amazônia), que produziriam energia suficiente e barata para o desenvolvimento mundial.
A partir daí, Kahn tascou ideias sobre a história mundial. A África, por exemplo, seria, hoje, o que a China é, rivalizando com o Canadá, que assumiria o lugar dos Estados Unidos. O Brasil seria uma espécie de subsidiário da África, mas teria peso na escala mundial devido a produção de energia advindo dos grandes lagos.
Kahn era um sujeito de 150 quilos de banha – e tinha acesso franco nos gabinetes de diversos presidentes. Os jornais brasileiros tratavam-no como gênio.
Valverde, meu mestre, leu o estudo de Kahn – e resolveu analisá-lo. Foi um massacre geográfico, sociológico, político e antropológico. Valverde pisou fundo e demonstrou todas as inconsistências e besteiras do projeto, que, no meio acadêmico – pasmem! – recebeu diversos apoios e acolhimentos. Lembro-me de uma frase do Valverde a respeito: “Muitos brasileiros, mesmo os titulados, adoram macaquear bobagens como se elas fossem genialidades!”
O marxismo, por exemplo, foi uma das mais formidáveis técnicas de afirmação do que seria o futuro do planeta. “O mundo caminha para o socialismo” – era sempre repetido e servia tanto para definir o cenário mundial que esperávamos como para derrotar intelectualmente aqueles que discordavam dos nossos argumentos. O marxismo era, antes de tudo, uma ciência – e, como tal, inquestionável, indiscutível, infalível. Eram as tolices que repetíamos com a convicção própria dos parvos.
Voltemos.
Os cenários futuros que li nos últimos dias buscam certezas que o saber histórico não garante. Eu, mesmo, não tenho mais confiança nas interpretações que buscam verdades onde elas ou não existem ou não podem existir.
Não é possível entender o conhecimento histórico como um indicador do que seremos ou teremos pela frente. Surpreende-me que os nossos profetas de hoje não entendam que a história nos pregou peças constantes, jogando para o espaço tudo o que tínhamos como previsão: o próprio fim do comunismo é o mais acabado exemplo entre o que acreditávamos e aquilo que de fato ocorreu. Na esfera doméstica, os exemplos – com o perdão da má palavra – abundam: o golpe de 1930, o regime militar, Collor, Sarney, Bolsonaro. Erramos todas as nossas previsões.
O marxismo, que era uma ciência (pelo menos achávamos), devido ao seu dogmatismo intrínseco, transformou-se, dizia meu amigo Joel Rufino dos Santos, em “tirania pedagógica”. O ensino histórico (e sociológico) passou a fazer uso de uma espécie de cartilha irredutível: 1) a história, como o demonstra Engels, e a sucessão inequívoca de modos de produção; 2) a luta de classes é a régua e compasso da interpretação histórica dos fatos; 3) Tudo se explica pelo econômico – as ações e os sentimentos humanas, a literatura, as ideias de cada época, o futebol, o Califado de Córdoba, tudo. A dialética, talvez a maior herança do marxismo, foi para o espaço, embora todos os marxistas se julguem e se afirmam “dialéticos”.
Se antes disso, a história era a sucessão enfadonha e estática dos feitos dos dominantes, a história de hoje, que se afirma científica, tornou-se a caricatura do marxismo.
Quem se arvora em fazer previsões políticas corre o risco de receber cartão vermelho de seus leitores. História não é palpite. História não se confunde com desejo político pessoal. História demanda análise bem fundada, lógica, isenta de “parti pris”. Chute não é história – nem é previsão histórica séria. Aliás, historiador sério não faz previsão.

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