Ter nascido
no Brasil é um fardo que todos os brasileiros conscientes carregam com enorme e
resignado estoicismo. Todos os dias somos postos à prova – e somos
sistematicamente reprovados. Não somos uma nação: somos um aglomerado de
criaturas que fingem se levar a sério. Quem explica?
Eu, de minha
parte, confesso que abandonei todas as minhas certezas a respeito, o que me
leva a afirmar que o brasileiro é, antes de tudo, um ente inexplicável. Tenho
amigos, mas os aceito como eles são – como espero que eles me aceitem como eu
sou. Mas meu assunto é o Brasil. E falar do Brasil é um exercício perigoso. E,
talvez, inútil. Mas, assim mesmo, vamos lá.
Como
esperado, Dilma foi afastada da Presidência. Tenho pena dela: não por razões
cristãs ou humanistas, mas por sua absoluta incapacidade de compreender quem é,
quais são suas limitações e, sobretudo, em que mundo ela vive e transita. Em
síntese, a inconsciência da Dilma me causa pasmo e pena. Estou esperando que um
analista faça, um dia, o retrato psicológico da Dilma. Talvez tenhamos muitas
surpresas. Será Dilma, por exemplo, uma ET desgarrada?
Dilma sofreu
impeachment, mas não perdeu o direito de exercer funções públicas. Os comentaristas
estão usando a palavra “fatiamento” da Constituição para explicar o que
aconteceu. Meu objetivo, hoje, é discutir o tema.
O artigo 52
da Constituição diz:
“Compete privativamente ao Senado
Federal”: “(...) I – processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da
República nos crimes de responsabilidade e os Ministros de Estado nos crimes da
mesma natureza conexos com aqueles; (...) Parágrafo único – Nos casos previstos
nos incisos I e II, funcionará como Presidente o do Supremo Tribunal Federal,
limitando-se a condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos
do Senado Federal, à perda do cargo, ‘com’ inabilitação, por oito anos, para o
exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais
cabíveis”.
Notem bem: a
palavra-chave do texto do parágrafo único é a preposição “com”. O que ela
significa? Fui buscar o significado da preposição “com” na “Gramática da língua
portuguesa”, do mestre Evanildo Bechara, livro que o Velhote do Penedo consulta
sistematicamente. Mostra o professor Bechara que a preposição “com” transmite a
ideia de “concomitância positiva”. A “concomitância negativa” seria construída
pela preposição “sem”, oposta à preposição “com”.
Se o parágrafo
único do artigo 52 da Constituição diz “(...) à perda do cargo, ‘com’
inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública”, não cabe a
menor dúvida: perda do cargo e inabilitação são, como diria o professor
Bechara, concomitantes, ou seja, “que acompanha; que se manifesta simultaneamente
com outro”, conforme ensina o “Dicionário da língua portuguesa”, da Academia
Brasileira de Letras.
Cuidei, até
agora, apenas do fato gramatical, que o ministro Lewandovski esgrimiu com absoluta
inépcia, secundado por Renan Soares e pelos 42 senadores que votaram a favor do
fatiamento – entre os quais se inclui, para minha vergonha, o meu amigo
Cristovam Buarque. O Velhote e o Cristovam somos, além de amigos, escritores:
logo, temos que respeitar as palavras, que são nossos instrumentos de trabalho.
Cristovam deu um pontapé na língua portuguesa – em nome de quê? Lamento, mas
como disse antes aceito os meus amigos como eles são.
Claro, há o
fato jurídico. O fatiamento foi pedido, durante a sessão do Senado, pelo PT –
sob a forma de questão de ordem. O fatiamento, tal como foi feito, representou
uma reforma da Constituição (ou emenda à Constituição), o que é do ponto de
vista jurídico uma aberração. Fez-se uma reforma constitucional com base numa
questão de ordem. Explico.
Segundo o
artigo 60 da Constituição, as emendas constitucionais devem ser propostas por “um
terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal”. As
emendas serão discutidas e votadas em cada Casa do Congresso Nacional, em dois
turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos os turnos, “três quintos
dos votos dos respectivos membros”.
Portanto, a
Constituição brasileira foi emendada - sob o beneplácito do ministro do Supremo
Tribunal Federal, Ricardo Lewandovski, e do presidente do Senado, Renan
Calheiros -, pelo voto exclusivo de 42 senadores, em votação única. Uma
violência constitucional, que mostra até onde chega o desmazelo, a anarquia e a
irresponsabilidade da estrutura jurídica do país.
Mas o
ministro Lewandovski, o senador Renan Calheiros e o PT não me decepcionaram –
eu poderia até dizer que não esperava deles outra coisa. Quem me decepcionou
foi o senador Cristovam Buarque, meu amigo, que votou favoravelmente à
excrescência jurídica. Ele não tinha o direito de fazer isto. E não me venham
com tentativas de explicação humanista. Ter pena de Dilma é uma coisa, que não
deve se contrapor à ordem jurídica.
Mas, claro, a
trampa tinha dois objetivos perfeitos e claros: abrir espaço para a Dilma se
cevar e, principalmente, livrar a cara do deputado Eduardo Cunha, que, se for
cassado, poderá concorrer às eleições de 2018, voltando gloriosamente à Câmara
dos Deputados. Uma farsa grotesca.
Não vou mais
me estender. Tudo está bem explicado. Por tudo que eu disse aqui, repito: ser
brasileiro é viver em permanente sofrimento, enfado e tédio. Às vezes me ponho
a pensar: por que eu não nasci na Groenlândia? Minha saída é ir morar em
Penedo, às margens plácidas e agonizantes do Velho Chico, onde minhas cinzas,
um dia, repousarão.
Como disse minha filha mais velha (embora jovem e linda) do Renan: "Esse não dá ponto sem nó". Renan está se lixando para Dilma e/ou Cunha. E humanismo é algo ignoto em sua cartilha. Mas pensa muito em si próprio, e nos inúmeros políticos que lhe dão sustentação. Tudo farinha do mesmo saco, no mesmo balaio de gatos. A Constituição que se exploda. abs,
ResponderExcluirCaro Velhote do Penedo,
ResponderExcluirNão sei por quais caminhos vim parar aqui no seu blog, há um tempo atrás. Tornei-me frequentador assíduo, pois gosto do seu estilo de escrever, apesar de não concordar 100% contigo - estou mais a direita.
Nós brasileiros, estes interessados em um país melhor, ainda iremos sofrer muito, mas não podemos desistir.
Parabéns pelos seus textos.
Abraços,
Sandro Preisler.