quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Uma trampa é uma trampa, é uma trampa, é uma trampa


Ter nascido no Brasil é um fardo que todos os brasileiros conscientes carregam com enorme e resignado estoicismo. Todos os dias somos postos à prova – e somos sistematicamente reprovados. Não somos uma nação: somos um aglomerado de criaturas que fingem se levar a sério. Quem explica?

Eu, de minha parte, confesso que abandonei todas as minhas certezas a respeito, o que me leva a afirmar que o brasileiro é, antes de tudo, um ente inexplicável. Tenho amigos, mas os aceito como eles são – como espero que eles me aceitem como eu sou. Mas meu assunto é o Brasil. E falar do Brasil é um exercício perigoso. E, talvez, inútil. Mas, assim mesmo, vamos lá.

Como esperado, Dilma foi afastada da Presidência. Tenho pena dela: não por razões cristãs ou humanistas, mas por sua absoluta incapacidade de compreender quem é, quais são suas limitações e, sobretudo, em que mundo ela vive e transita. Em síntese, a inconsciência da Dilma me causa pasmo e pena. Estou esperando que um analista faça, um dia, o retrato psicológico da Dilma. Talvez tenhamos muitas surpresas. Será Dilma, por exemplo, uma ET desgarrada?

Dilma sofreu impeachment, mas não perdeu o direito de exercer funções públicas. Os comentaristas estão usando a palavra “fatiamento” da Constituição para explicar o que aconteceu. Meu objetivo, hoje, é discutir o tema.

O artigo 52 da Constituição diz:

“Compete privativamente ao Senado Federal”: “(...) I – processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade e os Ministros de Estado nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles; (...) Parágrafo único – Nos casos previstos nos incisos I e II, funcionará como Presidente o do Supremo Tribunal Federal, limitando-se a condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, ‘com’ inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis”.

Notem bem: a palavra-chave do texto do parágrafo único é a preposição “com”. O que ela significa? Fui buscar o significado da preposição “com” na “Gramática da língua portuguesa”, do mestre Evanildo Bechara, livro que o Velhote do Penedo consulta sistematicamente. Mostra o professor Bechara que a preposição “com” transmite a ideia de “concomitância positiva”. A “concomitância negativa” seria construída pela preposição “sem”, oposta à preposição “com”.

Se o parágrafo único do artigo 52 da Constituição diz “(...) à perda do cargo, ‘com’ inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública”, não cabe a menor dúvida: perda do cargo e inabilitação são, como diria o professor Bechara, concomitantes, ou seja, “que acompanha; que se manifesta simultaneamente com outro”, conforme ensina o “Dicionário da língua portuguesa”, da Academia Brasileira de Letras.

Cuidei, até agora, apenas do fato gramatical, que o ministro Lewandovski esgrimiu com absoluta inépcia, secundado por Renan Soares e pelos 42 senadores que votaram a favor do fatiamento – entre os quais se inclui, para minha vergonha, o meu amigo Cristovam Buarque. O Velhote e o Cristovam somos, além de amigos, escritores: logo, temos que respeitar as palavras, que são nossos instrumentos de trabalho. Cristovam deu um pontapé na língua portuguesa – em nome de quê? Lamento, mas como disse antes aceito os meus amigos como eles são.

Claro, há o fato jurídico. O fatiamento foi pedido, durante a sessão do Senado, pelo PT – sob a forma de questão de ordem. O fatiamento, tal como foi feito, representou uma reforma da Constituição (ou emenda à Constituição), o que é do ponto de vista jurídico uma aberração. Fez-se uma reforma constitucional com base numa questão de ordem. Explico.

Segundo o artigo 60 da Constituição, as emendas constitucionais devem ser propostas por “um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal”. As emendas serão discutidas e votadas em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos os turnos, “três quintos dos votos dos respectivos membros”.

Portanto, a Constituição brasileira foi emendada - sob o beneplácito do ministro do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandovski, e do presidente do Senado, Renan Calheiros -, pelo voto exclusivo de 42 senadores, em votação única. Uma violência constitucional, que mostra até onde chega o desmazelo, a anarquia e a irresponsabilidade da estrutura jurídica do país.

Mas o ministro Lewandovski, o senador Renan Calheiros e o PT não me decepcionaram – eu poderia até dizer que não esperava deles outra coisa. Quem me decepcionou foi o senador Cristovam Buarque, meu amigo, que votou favoravelmente à excrescência jurídica. Ele não tinha o direito de fazer isto. E não me venham com tentativas de explicação humanista. Ter pena de Dilma é uma coisa, que não deve se contrapor à ordem jurídica.

Mas, claro, a trampa tinha dois objetivos perfeitos e claros: abrir espaço para a Dilma se cevar e, principalmente, livrar a cara do deputado Eduardo Cunha, que, se for cassado, poderá concorrer às eleições de 2018, voltando gloriosamente à Câmara dos Deputados. Uma farsa grotesca.

Não vou mais me estender. Tudo está bem explicado. Por tudo que eu disse aqui, repito: ser brasileiro é viver em permanente sofrimento, enfado e tédio. Às vezes me ponho a pensar: por que eu não nasci na Groenlândia? Minha saída é ir morar em Penedo, às margens plácidas e agonizantes do Velho Chico, onde minhas cinzas, um dia, repousarão.  

2 comentários:

  1. Como disse minha filha mais velha (embora jovem e linda) do Renan: "Esse não dá ponto sem nó". Renan está se lixando para Dilma e/ou Cunha. E humanismo é algo ignoto em sua cartilha. Mas pensa muito em si próprio, e nos inúmeros políticos que lhe dão sustentação. Tudo farinha do mesmo saco, no mesmo balaio de gatos. A Constituição que se exploda. abs,

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  2. Caro Velhote do Penedo,
    Não sei por quais caminhos vim parar aqui no seu blog, há um tempo atrás. Tornei-me frequentador assíduo, pois gosto do seu estilo de escrever, apesar de não concordar 100% contigo - estou mais a direita.
    Nós brasileiros, estes interessados em um país melhor, ainda iremos sofrer muito, mas não podemos desistir.
    Parabéns pelos seus textos.
    Abraços,
    Sandro Preisler.

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