Entre os acontecimentos do presente ano, o 70º aniversário da estreia de Otto Maria Carpeaux como articulista do Correio da Manhã deve ser lembrado com as pompas de um grande fato cultural. Porque Carpeaux não era uma pessoa qualquer; era um intelectual cujo saber era tão imenso quanto a sua capacidade de transformar erudição em algo útil e atraente. No entanto, ninguém se lembrou de que em 2010 celebrou os 110 anos de nascimento de Carpeaux em Viena, na Áustria.
Otto Maria Carpeaux costumava afirmar que tivera uma vida monótona, sem "episódios" especiais. Será? Em 1938, ainda na sua terra natal, o escritor engajou-se na luta contra o nazismo, o que o obrigou, quando da anexação da Áustria à Alemanha hitlerista, a uma fuga espetacular pelos cantões de uma Europa infeliz e perigosa. Carpeaux refugiou-se, primeiro, na Antuérpia, onde encontrou trabalho na Gaset Van Antwerpen (Gazeta da Antuérpia), o maior jornal belga de língua holandesa. No ano seguinte, em face do avanço das tropas nazistas, Carpeaux abandonou a Bélgica e, na condição de imigrante, veio para o Brasil. Durante a viagem, de navio, a guerra estourou na Europa. Carpeaux nunca mais voltaria a morar na Europa. Sua pátria agora seria o Brasil.
Até chegar ao Brasil, Carpeaux não tivera jamais nenhum contato com a cultura brasileira. Não conhecia a nossa língua, nunca lera um livro brasileiro e não tinha amigos por aqui. Pior: logo que desembarcou, foi levado para uma fazenda no Paraná, onde seus instrumentos de trabalho seriam a enxada e o arado, e não os livros e a caneta. Como era de se esperar, o cosmopolita Carpeaux, que se formara em ciências exatas, filosofia e letras nas melhores universidades europeias, que fizera cursos extracurriculares de história, sociologia e música, que escrevera cinco livros na Áustria sobre temas políticos e culturais, não se resignou ou acostumou à vida rural. Mudou-se então para São Paulo, onde passou ano e meio na mais precária das situações. Para sobreviver, Carpeaux foi, pouco a pouco, se desfazendo do que tinha, inclusive livros e objetos de arte, sem, contudo, conseguir qualquer espécie de trabalho.
Uma carta que escreveu ao crítico Álvaro Lins, que trabalhava no Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, mudou a vida do escritor austríaco. Em resposta, Lins pediu-lhe que escrevesse um artigo literário para o jornal. O artigo (sobre Kafka, o primeiro publicado na imprensa brasileira sobre o autor de "O processo") não só foi publicado, como garantiu a Carpeaux o emprego que tanto procurava: passou a escrever artigos semanais para o matutino carioca. Isto aconteceu há 70 anos, em 1941. É data que devemos lembrar.
A obra de Otto Maria Carpeaux transcende os limites da crítica literária, tornando-se a expressão de uma consciência crítica que vê na literatura um sistema de idéias enraizado na vida social e política. Alfredo Bosi notou que Carpeaux, mesmo educado junto aos culturalistas alemães e italianos do começo do século, tinha consciência de que nada se compreende fora da história. E não só da história: a imensa cultura de Carpeaux - e o sentimento da complexidade do objeto real - permitia-lhe lançar mão, num mesmo texto, da psicanálise, do marxismo e da estilística. Carpeaux soube como poucos reunir o conhecimento sistemático (adquirido, segundo ele, no "training" universitário) ao esforço cotidiano das redações dos jornais, onde militou durante toda a sua vida. "Para mim", dizia ele, "minha atividade literária engloba-se na atividade de jornalista. O que sou, no fundo, é só isso". Tirante a modéstia, o grande mérito de Carpeaux era a compreensão exata do que fazia, e a crença, sem pedantismo, na importância do seu ofício.
Sua monumental obra - "História da literatura ocidental" - seria, por sua dimensão e abrangência, um trabalho de equipe; contudo, Carpeaux elaborou-a sozinho, demonstrando não apenas um notável conhecimento do assunto como uma excepcional capacidade de síntese. Carlos Heitor Cony referiu-se, certa vez, à "sensação estranha" que ainda sente quando consulta um dos oito volumes da "História". Simplesmente, parece-lhe inacreditável ter convivido tantos anos com aquele autor que, a cada leitura, adquire a estatura de um clássico.
Iluminado, dotado de humor e alegria, do dom da emoção e da fúria, Carpeaux tornou-se, desde o início, ferrenho opositor do golpe militar de 1964, que lhe provocava amargas lembranças. No começo, Carpeaux limitou-se a redigir artigos sobre a natureza retrógrada e autoritária da nova ordem militar, dosando veemência, sarcasmo e conhecimento de causa. Era insuperável quando falava nas entrelinhas. Quando a vida política brasileira tornou-se asfixiante, e muitos preferiram o silêncio, a complacência ou o exílio, Carpeaux tomou uma decisão inesperada e corajosa: afastou-se do "círculo de amigos da literatura", dedicando "à luta pela libertação do povo brasileiro" o que lhe restava de capacidade de trabalho. Assim, quando tantos intelectuais tendiam à adesão, Carpeaux preferiu arriscar-se em nome de valores humanitários, como a liberdade e a justiça. Ele, que nos dera sempre uma aula de erudição fecunda, dava-nos agora uma prova de grandeza moral. Era um grande homem.
Marcelo Ridenti, no livro "Em busca do povo brasileiro", comentou o envolvimento de intelectuais, entre os quais Carpeaux, nos preparativos da resistência armada à ditadura comandada por Leonel Brizola, exilado no Uruguai. Além de Carpeaux, serviram ao movimento o poeta Thiago de Mello, os escritores Antonio Callado e Carlos Heitor Cony e os jornalistas Joel Silveira e Teresa Cesário Alvim. Segundo Ridenti, a polícia política, surpreendentemente, nunca descobriu o engajamento dos intelectuais na conspiração, que terminou - melancolicamente - no fracasso da chamada "guerrilha de Caparaó".
Dentro do movimento, cabia a Otto Maria Carpeaux levar e buscar mensagens secretas, utilizando simplesmente a sua memória prodigiosa. Como notou Antonio Callado, Carpeaux decorava textos longos e importantes, transmitindo-os pessoalmente a interlocutores, os quais visitava em outros estados e cidades. Era, acrescentou Callado, como se ele transportasse um folheto impresso. Tal atividade revolucionária de Carpeaux foi, sem dúvida, heroica e de muita utilidade, mas tinha também um certo sabor cômico: Carpeaux era gago e jamais se libertou completamente do sotaque austríaco. A cena devia ser inesquecível: Carpeaux, gago e com sotaque, sussurrando uma mensagem revolucionária a um atônito interlocutor.
Otto Maria Carpeaux morreu em 1978. Teve um enterro simples, sem cruzes, sem anúncios. O Brasil ainda vivia o regime autoritário, que ele tanto combatera e em relação ao qual jamais fizera concessões. Seus livros, que desapareceram das livrarias, estão agora, aos poucos, sendo reeditados graças à iniciativa do editor José Mário Pereira. Ainda bem.
A obra de Otto Maria Carpeaux
- A cinza do purgatório (1942)
- Origens e fins (1943)
- Pequena bibliografia crítica da literatura brasileira (1949)
- Respostas e perguntas (1953)
- Presenças (1958)
- Uma nova história da música (1958)
- Livros na mesa (1960)
- A literatura alemã (1964)
- A batalha da América Latina (1965)
- O Brasil no espelho do mundo (1965)
- História da literatura ocidental (1959-1966)
- Vinte e cinco anos de literatura (1968)
- Hemingway. Tempo, vida e obra (1971)
- Alceu Amoroso Lima (1978) - póstumo
- Reflexo e realidade (1978) - póstumo
- Sobre letras e artes (1992) - póstumo
- Ensaios reunidos: de "A cinza do purgatório" até "Livros na mesa" (1999) - póstumo